Livro por que ler os classicos

Livro por que ler os classicos

Desenho de Guazzelli para o álbum Eu, Fernando Pessoa em quadrinhos, com roteiro de Susana Ventura.

De saída, a primeira dificuldade que assombra tal pergunta é a de justamente tentar definir o que diabo é um clássico literário. A despeito de a própria “elasticidade” do termo comportar várias definições, a obra clássica pode ser pensada como aquela que, ao longo do tempo, acaba por se tornar um referencial fundante para a literatura, seja em termos locais, seja em termos universais. Ou ainda, para usar uma das dezesseis possibilidades de definição do dicionário Aurélio – que, aliás, é um clássico –, “diz‑se de ou obra ou autor que, por sua originalidade, pureza de expressão e forma irrepreensível, constitui modelo digno de imitação”. Em resumo, é possível associar à ideia de obra clássica tanto a necessidade de certo reconhecimento ao longo do tempo, quanto a verdade de que, fatalmente, ela se tornará um modelo para outros autores. Ambos, obviamente, chancelados por leitores e críticos.

De fato, tempo e modelo são dois pontos de partida interessantes. Ainda que se possa dizer que algumas obras sejam clássicas de nascença, a maturação do tempo costuma ser a prova dos nove de uma obra literária, permitindo que olhares críticos dos mais diversos matizes se debrucem sobre ela, confirmando ou não o seu estatuto. Sem maiores dificuldades, é perceptível que várias obras literárias transcendem seu próprio tempo histórico e, a cada nova leitura, continuam a suscitar discussões, ampliando o alcance do debate estético em torno delas. E mesmo hoje, quando quase tudo se torna descartável e leva, erroneamente, alguns leitores e críticos a acharem que o dialogo necessário com a historia, e consequentemente com a tradição, não serve para nada em literatura, não é possível fugir dessa simples verdade, isto é, a de que o indício de perenidade de uma obra só vem mesmo com o tempo.

Já quanto à noção de modelo (e modelo deve ser aqui pensado de maneira mais ampla e não apenas no sentido aristotélico do termo consagrado pela crítica), é preciso levar sempre em conta que algumas obras, construídas a partir de premissas estéticas algo datadas, transformam‑se em modelos não apenas em função do comprometimento exemplar de seus autores para com tais premissas, mas porque, na verdade, elas trazem em si algo a mais, algo que, se compreendido, amplia, e muito, a capacidade de o leitor sentir e entender o mundo e suas inerentes contradições. Em outras palavras, bem lido, o texto clássico tem o poder (talvez secreto?) de entranhar inquietações na alma do leitor, sobretudo quando tematizam problemas e situações que, no limite, preocupam‑se – a todo o momento – em lembrar ao ser humano que este não pode se esquecer de sua própria humanidade. Nessa mesma direção, o critico Antonio Candido, discutindo o direito universal à fruição da arte, observa com a lucidez de sempre que a literatura “desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. E nos dias de hoje, regidos pela lógica do individualismo e do sucesso a qualquer preço, a lembrança de humanidade é absolutamente necessária.

A leitura de um clássico, no entanto, pode apresentar eventuais dificuldades. Às vezes, a própria palavra “clássico” cria no leitor um anteparo de medo que não apenas o constrange mas, o que é pior, afasta‑o do livro. Mas, como se sabe, o conhecimento não é algo dado assim de graça, é preciso buscá‑lo. Com um pouco de esforço, já que os percalços intelectuais também legitimam o saber, o leitor poderá conhecer mundos e personagens que são paradigmas fundamentais da própria cultura universal. Afinal de contas, a experiência de ler obras, por exemplo, como as de Homero, Shakespeare, Cervantes, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, é um convite permanente à reflexão, seja sobre o mundo, seja sobre o indivíduo.

Um grande texto nunca se esgota na primeira leitura, sempre existe alguma coisa a ser percebida ou algum segredo a ser decifrado. Aliás, talvez por causa dessa mesma percepção é que o escritor italiano Ítalo Calvino, em livro famoso, cujo titulo é o mesmo deste artigo, tenha observado com todas as letras que “clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: estou relendo e nunca estou lendo”.

De todo modo, lendo ou relendo, o que de fato importa é que a leitura de um clássico é antes de qualquer coisa um passaporte seguro que pode muito bem conduzir o leitor
a um saber reflexivo e (por que não?) ao prazer. E, no caso brasileiro, cuja democratização universal ao acesso à cultura letrada, a despeito dos progressos, ainda esta por vir, ela é ainda mais necessária. País justo é o que prima pela educação e disseminar livros (clássicos ou não) já é um bom começo. Então é preciso sempre ler pela primeira ou enésima vez, já que a literatura e os clássicos de modo geral são igualmente formas especiais de conhecimento que ajudam o leitor, ainda segundo mestre Candido, a não apenas “conhecer os sentimentos e a sociedade”, mas, sobretudo, “a tomar posição em face deles”. Ou seja, ter uma posição crítica sobre o mundo passa inevitavelmente pela reflexão sobre ele, e os clássicos estão aí para serem lidos.

Enfim, para citar um clássico brasileiro, se “viver é”, de fato, “muito perigoso”, ler um clássico é, nesse sentido, igualmente um risco, já que, na maioria das vezes, existe a real possibilidade de o leitor (ainda que desprevenido) sair do livro um pouco melhor do que quando entrou nele, o que, de todo modo, já um ganho significativo. Ou então, para rematar o problema, e recorrendo outra vez a Ítalo Calvino, nada como a velha e boa obviedade: “a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos”. Quem ler, verá…

— WILTON JOSÉ MARQUES

Professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e autor de Gonçalves Dias: o poeta na contramão (Prêmio Jabuti/2011).

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Italo Calvino nasceu em Cuba, a 15 de outubro de 1923. Passou praticamente toda a sua vida em Itália, excetuando os treze anos em que viveu em Paris. Faleceu em Siena, a 19 de setembro de 1985. 

Calvino estudou em San Remo até aos 20 anos, ingressando então na Resistência contra o fascismo e a ocupação nazi, depois de aderir ao Partido Comunista, que abandonou em 1957. Terminada a Segunda Guerra Mundial, instalou-se em Turim, começando a trabalhar na Einaudi, que depressa se transformou numa das principais editoras italianas do pós-guerra. 

Já trabalhava como consultor literário quando concluiu a sua licenciatura em Letras. Com O Atalho dos Ninhos de Aranha (1947) – a que se seguiu, em 1949, Ultimo Viene il Corvo e, em 1952, O Visconde Cortado ao Meio, primeiro romance da sua trilogia fantástica Os Nossos Antepassados – deu início a uma surpreendente carreira literária, que viria a consagrá-lo como um dos maiores escritores italianos do século XX.

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Jornalismo

Só as obras bem escritas passam para a posteridade, tornam-se fonte de conhecimento - e não apenas de entretenimento - e, enfim, podem ser chamadas de clássicos. Seus autores são verdadeiros artistas. Eles conseguem organizar bem seus pensamentos, esculpem a língua com cuidado e estilo e põem em foco os principais conflitos da existência humana. Assim, ao experimentar as emoções de diversos personagens consagrados, o leitor busca respostas para a própria vida, compreende melhor o mundo e se torna um escritor mais criativo. "Já que não podemos entrar em uma máquina do tempo e conhecer o cotidiano da Grécia Antiga ou a realidade do século 18, ler é a melhor maneira de nos transportar para outros universos, tempos e espaços", diz a escritora Ana Maria Machado. "Todo leitor é, quando está lendo, um leitor de si mesmo", disse Marcel Proust (1871-1922), um dos maiores escritores franceses, autor da obra-prima Em Busca do Tempo Perdido. Isso acontece quando os personagens retratados servem de inspiração e reflexão para leitores de qualquer época e lugar. E como trabalhar com esses livros? Em que fase os estudantes estão preparados para esse tipo de leitura? É um equívoco explorar apenas títulos que o grau de autonomia da turma permite compreender sem dificuldade. Um projeto de leitura comprometido com a formação de leitores apresenta, além de títulos que podem ser lidos com fluência, uma cuidadosa seleção que rompa com seu universo de expectativas. Um clássico pode ser retomado em diferentes etapas do processo de aprendizagem. Quanto mais velhos forem os alunos, maior o aprofundamento da análise da obra.

As adaptações literárias

Uma das estratégias para aproximar os estudantes desse tipo de literatura é a leitura de adaptações. Nem todos os especialistas recomendam sua utilização, já que a obra é modificada no tamanho e nos recursos lingüísticos. Muitas vezes apenas o enredo permanece. A consultora Maria José Nóbrega defende a utilização dessas publicações, apesar de reconhecer que elas mutilam o texto. "É uma forma de se aproximar da obra, do enredo e da mensagem que o autor quis passar. Mas nenhum professor deve se contentar apenas com isso." Considere também as adaptações de obras literárias produzidas para cinema, teatro e TV como atalhos de acesso ao original. Você já reparou como elas despertam a curiosidade pelo livro? Em qualquer caso, os alunos precisam ter contato com o texto original, nem que seja apenas com trechos. Sugira um exercício de comparação. Peça a eles que confrontem passagens importantes de uma obra original e da adaptada. Veja no exemplo abaixo como um trecho de Alice no País das Maravilhas é resumido na adaptação e como a linguagem fica mais coloquial.


Tradução do original

"Isso nada tinha de extraordinário; nem Alice achou muito fora do normal ouvir o Coelho dizer consigo mesmo - Meu Deus, Meu Deus! Vou chegar atrasado! Quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, olhou-o e saiu apressado. Alice se levantou, porque pelo espírito correu-lhe que antes nunca vira um coelho de colete nem de relógio no bolso, e ardendo de curiosidade saiu pelo campo atrás dele..."

Oliveira Ribeiro Netto, do original de Lewis Carroll / Ed. do Brasil, s/data, pág. 9, cap. 1 / Na Toca do Coelho

Adaptação Alice não estranhou muito, mas se impressionou bastante quando o coelho, ofegante, tirou do bolso um relógio e olhou a hora, espantado.

"Que coelho mais engraçado! De relógio, é demais!", Alice pensou, e correu atrás.

Nílson José Machado / Ed. Scipione, 2002, pág. 4, cap. 1 / A Queda na Toca do Coelho Branco

Escolha a adaptação ? Verifique quem é o adaptador. Há diversos escritores de renome que se dedicam ou se dedicaram a esse trabalho, como Ana Maria Machado, Carlos Heitor Cony, Clarice Lispector, Monteiro Lobato, Orígenes Lessa e Tatiana Belinky. ? Leia cada linha do livro e compare com o original se o adaptador não for conhecido. Confira se ele foi fiel ao enredo da história, no caso de prosa. Não há como justificar uma edição de Chapeuzinho Vermelho em que o lobo não devora a vovó. ? Observe se foram preservados recursos estilísticos, como metáforas e ironias. Não faz sentido, por exemplo, ler Honoré de Balzac, famoso escritor francês do século 19, na linguagem coloquial. ? Veja se o texto tem fluência e se é bem escrito. Há adaptações que parecem resumo de novela. Como são muito fragmentadas, acabam não envolvendo o leitor.

? Baseie-se nas listas de livros recomendados pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil e nos indicados de alguns prêmios de literatura nacional, como o Jabuti.

Na sala de aula
O tema e os recursos de linguagem empregados em uma obra clássica podem determinar a maior ou menor dificuldade de leitura. A familiaridade que o leitor tem com o assunto de um livro pode ser um atrativo. Veja o exemplo: A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, escrito em 1843, trata das aventuras amorosas de um grupo de amigos de férias em Paquetá, no Rio de Janeiro. Apesar de a linguagem ser do século retrasado, o tema não o é. Ainda hoje, amores, desejos e viagens são assuntos que interessam aos jovens.

Pergunte à turma como eram os namoros 150 anos atrás. Quais os assuntos tratados em uma roda de amigos na faixa dos 20 anos? Fique atento. Apesar de o tema ser familiar, outros pontos da trama podem não fazer parte do repertório da classe, como o papel do homem e da mulher na sociedade da época, a economia, a política e a cultura locais. Nesse caso, trabalhe em conjunto com professores de História e Geografia. Analise a maneira como a história foi escrita, se há um narrador, se o autor utiliza metáforas e ironias. Muitas vezes a criança ainda desconhece o valor desses recursos. Veja também se as palavras empregadas fazem parte do universo da turma. Muitas delas podem ser desconhecidas, pois o livro foi escrito há bastante tempo. Esses pontos são os principais obstáculos da leitura. "O melhor de um livro é a maneira como a história é contada. Caso contrário, não haveria diferença entre a história de amor de uma telenovela, como Mulheres Apaixonadas, da Rede Globo, e Romeu e Julieta, de William Shakespeare", explica Ana Maria Machado.

Entrevista  Ana Maria Machado
Ela é uma das mais importantes escritoras do país. Já publicou 110 livros, a maioria para crianças, e no ano passado lançou mais um: Como e Por Que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo. Também já foi professora e conhece bem as necessidades e dificuldades ao trabalhar com os textos universais.

Qual o primeiro passo que um professor sem intimidade com os clássicos deve dar? 
Ao se propor a trabalhar com literatura, é fundamental que ele conheça essas obras. Deve ao menos ter lido uns três títulos na vida. Caso contrário, é como ensinar a nadar sem nunca ter entrado na água.

Como deve ser a mediação entre o aluno e as histórias universais? 
O professor deve demonstrar paixão pela leitura. Se ele gosta de ler, deve ser deslumbrado. Pode, por exemplo, chegar à sala de aula dizendo: "Olhem, existe no mundo uma coisa maravilhosa, que são as histórias. Mas é difícil descobrir sozinho o quanto é bom conhecer esses textos. Por isso, quero compartilhar com vocês um deles, que fala sobre um menino que não podia crescer, o Peter Pan". Ensinar a ler clássicos é uma iniciação afetiva.

Que pecados não podem ser cometidos em uma atividade de leitura?
Primeiro, obrigar a criança ou o jovem a ler. A leitura deve ser encarada como uma paixão, e isso não acontece durante uma tarefa obrigatória. Segundo, avaliar a leitura por meio de perguntas óbvias, cujas respostas podem ser encontradas em qualquer resumo. A avaliação deve verificar se o estudante teve contato com o texto indicado e dar espaço para ele dizer se gostou ou não. Por isso uma boa prova pode ser feita com consulta.

Os imperdíveis, segundo a escritora

Para leitores de 1ª a 4ª série
Qualquer livro de Monteiro Lobato, Contos dos Irmãos Grimm (Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida e outros), Peter Pan, de James Mattew Barrie, As Aventuras do Ursinho Puff, de A. A. Milne, e Odisséia, de Homero.

Para leitores de 5ª a 8ª série
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, Ilha do Tesouro, de Robert Louis Stevenson, O Rei Artur e a Távola Redonda, de autor desconhecido, Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, Robin Hood, de Neil Philip, e Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes.

Um ótimo trampolim Desde que foi lançada, em 2000, a série Harry Potter, da escocesa J.K. Rowling, já vendeu mais de 50 milhões de livros. Por que tanta gente se inebria com as histórias do garotinho órfão que vira aprendiz de feiticeiro? Alguns críticos atribuem o sucesso ao marketing. Outros afirmam que os livros são bem escritos. Nelly Novaes Coelho, professora da Universidade de São Paulo, afirma que Harry Potter tem tudo para se tornar um clássico. "A autora explora o enigma, o mistério e a magia, elementos que nos levam para fora do espaço da lógica." Para ela, os recursos estilísticos também são bem utilizados. "A leitura é ágil como um videogame, por isso prende o leitor."

A consultora Maria José Nóbrega sugere que esses livros sejam trabalhados a partir da 5a série como trampolim para leituras mais complexas. Escolha títulos que tenham pontos em comum com a trama, como Oliver Twist, de Charles Dickens, e O Rei Arthur e a Távola Redonda, de autor desconhecido.

Quer saber mais?

Contatos

Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, R. da Imprensa, 16, 12º andar, 20030-130, Rio de Janeiro, RJ, tel. (21) 2262-9130, www.fnlij.org.br

BIBLIOGRAFIA

Como e Por Que Ler os Clássicos Universais Desde Cedo, Ana Maria Machado, 145 págs., Ed. Objetiva, tel. (21) 2556-7824, 19 reais

Por Que Ler os Clássicos, Ítalo Calvino, 279 págs., Ed. Cia. das Letras, tel. (11) 3707-3500, 31 reais

INTERNET

Conheça os livros finalistas e premiados do Prêmio Jabuti de literatura www.cbl.org.br e leia os clássicos em bibliotecas virtuais www.bibvirt.futuro.usp.br, www.bibliotecavirtual.org.br

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