Artigos • • https://doi.org/10.1590/S0104-87752013000100015 copiar Cláudio Beserra de Vasconcelos Sobre o autor
O artigo discute o processo de legitimação do regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964, durante o período compreendido entre o golpe de 31 de março daquele ano e a edição do Ato Institucional n.5, em 13 de dezembro de 1968. A ênfase recai sobre a análise da preservação das instituições democrático-representativas. Especificamente, examina a relação entre os militares no exercício do Poder Executivo e o Legislativo, a opção pela preservação desta instituição como um caminho para a construção da legitimidade, visto que indicaria o compromisso democrático do regime, e os conflitos resultantes desta escolha. ditadura; poder legislativo; legitimidade
The article discusses the legitimizing process of the dictatorship regime established in Brazil in 1964, during the period between the March 31 coup of that year and the publication of Institutional Act n.5, in December 13, 1968. The emphasis is on analysis of the preservation of democratic-representative institutions. Specifically, it examines the relationship between the military in the exercise of Executive Power and the Legislative, the option for the preservation of this institution as a way for the construction of legitimacy, since they indicate the democratic commitment of the regime, and the conflicts resulting from this choice. dictatorship; legislative; legitimacy
ARTIGOS Os militares e a legitimidade do regime ditatorial (1964-1968): a preservação do Legislativo The military and the legitimacy of the dictatorship regime (1964-1968): the preservation of the Legislative Cláudio Beserra de Vasconcelos Pesquisador do Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política. Universidade Federal do Rio de Janeiro. RESUMO O artigo discute o processo de legitimação do regime ditatorial instaurado no Brasil em 1964, durante o período compreendido entre o golpe de 31 de março daquele ano e a edição do Ato Institucional n.5, em 13 de dezembro de 1968. A ênfase recai sobre a análise da preservação das instituições democrático-representativas. Especificamente, examina a relação entre os militares no exercício do Poder Executivo e o Legislativo, a opção pela preservação desta instituição como um caminho para a construção da legitimidade, visto que indicaria o compromisso democrático do regime, e os conflitos resultantes desta escolha. Palavras-chave: ditadura, poder legislativo, legitimidade ABSTRACT The article discusses the legitimizing process of the dictatorship regime established in Brazil in 1964, during the period between the March 31 coup of that year and the publication of Institutional Act n.5, in December 13, 1968. The emphasis is on analysis of the preservation of democratic-representative institutions. Specifically, it examines the relationship between the military in the exercise of Executive Power and the Legislative, the option for the preservation of this institution as a way for the construction of legitimacy, since they indicate the democratic commitment of the regime, and the conflicts resulting from this choice. Keywords: dictatorship, legislative, legitimacy
Introdução Efetivada a vitória da intervenção armada e conquistado o Estado brasileiro, em abril de 1964, a preocupação passou a ser a constituição de um novo governo. A frente civil-militar que depôs o presidente João Goulart não era homogênea e, uma vez no poder, dividiu-se em face de questões cruciais relativas ao estabelecimento da nova ordem. A afirmação da natureza democrática do regime era, certamente, um dos principais divisores entre as correntes militares que passaram a disputar a primazia na condução do novo regime. "Moderados", "linhas-duras" e "nacionalistas radicais" divergiam em relação ao quantum de democracia a ser preservado da ordem anterior, bem como quanto ao cronograma de devolução do poder aos civis. Por seu lado, as camadas médias e alta da sociedade haviam apoiado a intervenção militar, o que deu certa legitimidade à deposição de João Goulart, mas este apoio não era naturalmente extensivo a um governo estabelecido fora dos padrões de normalidade democrática. A corrente "moderada" ou "castelista", acreditando que precisava legitimar o seu projeto de dominação e reforma institucional junto a estas parcelas da sociedade, investiu considerável energia política na obtenção deste assentimento. Esta opção é resultado da conscientização de que, como afirma Bolivar Lamounier, um poder, para ser legítimo, precisa contar com o suporte de outros centros de poder. O objetivo é que, em caso de necessidade, estes outros centros possam ser convocados em sua defesa. Esse suporte não precisa ser a maioria numérica, mas representar um conjunto de agentes que ocupem posições semelhantes, e hierarquicamente "superiores" no "espaço social", e que estejam sujeitos a condicionamentos semelhantes. Desse modo, terão, provavelmente, atitudes e interesses semelhantes, logo, práticas e tomadas de posições semelhantes aos detentores do poder. Assim, eles poderão reconhecer o "capital simbólico" da classe dirigente, reforçando o seu "poder simbólico", contribuindo para o estabelecimento do consenso desejado. Por essa razão, para legitimar a sua política, é que o discurso do regime se dirigiu às camadas médias e alta. Em face desta opção pelo assentimento de determinados setores sociais, pós-1964, prevaleceu um projeto de dominação política complexo e híbrido, em que as instituições do período democrático – como o Legislativo – coexistiram com o aparato institucional progressivamente montado para viabilizar a implantação da ditadura no país. A análise da relação entre os poderes Executivo e Legislativo contribui para elucidar a complexidade desse projeto de dominação política. O espaço permitido aos parlamentares e a necessidade da ditadura de, em busca de legitimação, respeitar determinados ritos democráticos resultaram em uma convivência marcada por conflitos e negociações políticas. Nesta relação, as eventuais derrotas do governo, embora representassem obstáculos para a ação do Executivo – superados por meio de atos arbitrários, sempre que necessário –, serviram para conferir legitimidade democrática às ações da ditadura. A intenção deste artigo, portanto, é tentar compreender o processo de legitimação do regime instaurado em 1964 centrando a análise na preservação das instituições democrático-representativas. Precisamente, será examinada a relação Executivo-Legislativo durante o período compreendido entre o golpe de 31 de março de 1964 e a edição do Ato Institucional n.5, em 13 de dezembro de 1968, e a construção da ideia de que a preservação do Poder Legislativo indicava um compromisso democrático do regime. Como a grande imprensa – integrante da elite econômica, dependente da publicidade oriunda das grandes companhias estrangeiras e do governo, defensora de um projeto político liberal e portadora de um discurso marcado pela defesa da democracia e pela preservação de princípios e instituições associados a ela – exerceu um papel estratégico na missão de difundir os ideários do regime aos grupos sociais que interessavam, será efetuado um recurso aos editoriais dos jornais O Globo, O Estado de São Paulo e Jornal do Brasil. O jornal O Globo tende a manter-se ao lado do regime e do governo todo o tempo. Já O Estado de São Paulo e o Jornal do Brasil, embora defensores dos ideais "originais" da "Revolução", ao longo do tempo, tornam-se críticos do modus operandi dos governos militares. Tais características fazem com que, em seus editoriais, encontram-se elementos que contribuem para a melhor compreensão do relacionamento entre o Executivo e o Legislativo. É preciso salientar que não ignoro o uso da força como instrumento de dominação, mas o objetivo aqui é o de destacar o papel da legitimação "sublegal" na conquista e na construção do Estado em sociedades como a brasileira. Sem ela, o domínio não se sustentaria por um longo tempo. Há que ficar claro, também, como afirma Lucio Levi, que a legitimidade é uma situação nunca plenamente concretizada na história, a não ser como aspiração. A preservação de princípios democráticos As análises acerca da ditadura brasileira têm notado o esforço do grupo civil-militar no poder em associar a sua imagem à defesa da democracia. Contudo, poucas se debruçaram especificamente sobre a relação entre a insistência nessa retórica e o problema da necessidade de legitimação democrática do regime ditatorial. Desse modo, não permitem perceber a complexidade do processo de dominação iniciado em 1964. Maria Aparecida de Aquino destaca, por exemplo, que a construção de um regime autoritário cujos dirigentes insistiam por caracterizá-lo como democrático era uma especificidade da nova situação. Por outro lado, o fato de se procurar manter uma "aparência formal de democracia para encobrir uma prática, essencialmente autoritária" seria uma ambiguidade. Para Aquino, a especificidade poderia levar à explicação da ambiguidade e contribuir para a compreensão da menor intensidade da violência no caso brasileiro em comparação aos dos demais países americanos, se forem considerados apenas os dados numéricos. Contudo, a autora continua a se perguntar o porquê de tamanha preocupação em manter, ao menos na aparência, um regime "democrático". Não me parece que ela responda a esta questão. Talvez esta não fosse a sua preocupação. Contudo, Aquino está correta ao afirmar a especificidade do caso brasileiro, em especial se compararmos com as ditaduras instauradas em outros países latino-americanos no mesmo período. Na Argentina, em 1976, por exemplo, o discurso dos militares caracterizava "o mal" como o caos representado pelo governo de Isabelita Perón. Segundo Isabel Santi e Silvia Sigal, "O regime é apresentado (...) como um regime corretivo das estruturas e mentalidades que suscitaram uma democracia instável e governos demagógicos". De acordo com as autoras, os militares argentinos não se preocupam em lançar as bases de sua legitimidade. O caos, por si só, já era a justificativa suficiente, e atraía o apoio ou a benevolência de uma parte considerável da população. Legitimidade óbvia, natural e fruto das reiteradas intervenções militares pós-30, que teriam estruturado uma legitimidade política virtual para as Forças Armadas argentinas e teriam construído um discurso legitimatório que passou a fazer parte da cultura política do país. Para as autoras, "Um golpe militar na Argentina é um significado da cultura política. Assim, mais que explicar a urgência de sua intervenção, interessará aos militares diferenciar o golpe de 1976 dos anteriores, evitar que o código, historicamente constituído, os considere uma mera repetição". Já no caso chileno, onde, segundo Santi e Sigal, não teria havido muitas intervenções militares, pois as Forças Armadas seriam mais profissionais e tenderiam a respeitar a Constituição e as instituições, os militares tiveram a necessidade de empreender um verdadeiro trabalho de estruturação ideológica no sentido de justificar sua intervenção. Assim, tentaram construir a ideia de que a intervenção constituía uma resposta a um requerimento da sociedade civil. Em face de tal pressuposto, os discursos caracterizavam-se pela denúncia da situação de ilegitimidade e ilegalidade do governo de Salvador Allende (violações de regulamentos e instituições democráticas). Os militares chilenos, ao justificarem a sua presença no Estado em face da ilegitimidade e ilegalidade do governo Allende, atribuíam a si próprios uma legitimidade dentro de um limite legal, apagando o desacato que faziam ao regime institucional. Retornando ao caso brasileiro, o trabalho de Lúcia Klein fornece elementos mais significativos do que os expostos por Aquino para um estudo mais geral da questão da legitimidade. Para Klein, esta opção política foi fruto de uma análise da conjuntura, visto que, em momentos de grandes mudanças na estrutura de poder, a preservação da forma de dominação típica da estrutura anterior é um fator estratégico de grande relevância, pois se constitui em valioso instrumento para assegurar a legitimidade. Assim como Klein, Maria D'Alva Gil Kinzo sustenta que a adoção desta opção foi resultado da conclusão de impossibilidade de um rompimento absoluto com a situação anterior, o que incluía a não erradicação em definitivo das instituições democrático-representativas. Se procedesse a tal extinção, o projeto de legitimação se tornaria inviável. Indo além, Kinzo considera que: "A constante reiteração do compromisso da Revolução com o restabelecimento da democracia era, talvez, algo mais do que um slogan usado na busca de legitimação para a intervenção militar". Considero esta reiteração como resultado de padrões de uma cultura política na qual se firmou a crença na importância da preservação da democracia. Um primeiro aspecto a esse respeito parte da constatação de que não houve governo na história que tenha se estabelecido exclusivamente através da força. Isto é ainda mais significativo a partir da segunda metade do século XX. Em uma análise dos mais recentes regimes autoritários verifica-se que estes, de modo geral, procuraram associar as suas ações à defesa da democracia. Como afirma Renato Lemos:
No Brasil não foi diferente. A cultura política nacional há tempos arraigada exigia uma referência democrática. Como frisa Ayda Connia de Souza, "Desde a Independência, a ideologia presente nas elites políticas é a democrática". Assim, esses antecedentes históricos e culturais serviriam de barreira a uma dominação que se furtasse a fazer referências à democracia, no pós-1945. Para determinadas parcelas da sociedade brasileira – especificamente, as elites e as camadas médias – era impositivo um respeito às normas da democracia liberal. Mas a pressão pela preservação de princípios democráticos não vinha apenas do ambiente externo. Para certos analistas, uma parte dos novos detentores do poder, entre eles grupos militares, propunha um respeito às normas e instituições tradicionais da democracia, ainda que sob tutela. Como destaca Bolivar Lamounier,
E para Kinzo,
Portanto, como regime autoritário, queria o controle social, mas precisava enfrentar o desafio de buscar legitimidade. Porém, da mesma forma que o mundo moderno de modo geral, como ressalta Lamounier, no Brasil há um legado ideológico e institucional que, apesar de apresentar um caráter autoritário, possui, também, componentes liberais que impossibilitam a legitimação de um sistema autoritário em termos duradouros. Assim, a manutenção das normas e instituições tradicionais da democracia apresentava-se como uma base potencial de legitimidade. Todavia, a existência desses padrões da cultura política não era suficiente para garantir a preservação plena dos princípios democráticos. Os fatores autoritários inviabilizavam um retorno puro e simples à situação pré-64. Como resultado, desencadeou-se um processo híbrido de dominação política. Como destaca Renato Lemos:
Adotando um ponto de vista similar ao de Lemos, Maria D'Alva Gil Kinzo sustenta que a facção militar "moderada" que predominou nos primeiros anos do regime não tinha a intenção de instaurar um regime tipicamente militar-autoritário. Nesse sentido, procurou estabelecer um processo de "democracia tutelada" que consistia, basicamente, na instituição de um regime híbrido que buscava conciliar a manutenção de uma imagem de legitimidade democrática, baseada na preservação de princípios e instituições típicas de regimes democrático-representativos, com a meta de "regeneração" do país, fundada no saneamento político através da eliminação da corrupção e da subversão, associadas ao comunismo. Seu objetivo seria o exercício direto do poder pelos militares pelo tempo necessário à consolidação das bases de um sistema político seguro e estável, protegido contra a subversão, a corrupção e o comunismo, para, só depois, devolver o poder aos civis. Como efeito, se por um lado esse projeto garantiu poderes excepcionais ao Executivo, por outro, o constrangeu a seguir as normas democráticas que ele preservou e que dizia defender; restringiu os poderes do Legislativo e do Judiciário, mas os manteve em atividade; sustentou eleições para presidente, mas indiretas, e eleições periódicas para o Legislativo, mas sob controle; conservou, inicialmente, os partidos, mas com expurgo dos parlamentares indesejáveis; extinguiu-os, por fim, mas elaborou um novo sistema partidário; preservou, a princípio, a constituição de 1946, mas impôs-lhe alterações. Porém há análises, como a de Anne-Marie Smith – que embora também constate que, para as elites e classe média, "cujo apoio era essencial para a estabilidade e o bom êxito do regime e para os quais se destinavam muitas de suas políticas, era reconfortante a manutenção de certas instituições tradicionais" –, que sustentam que a opção de observar determinados aspectos típicos das democracias liberais tinha o intuito de "manter a aparência". Para ela,
O raciocínio de que a preservação de princípios democráticos tenha sido uma mera formalidade, a meu ver, não está correto. É fato que o regime implantado em 1964 não deve ser chamado de democracia, e sim de ditadura. Mas, mesmo assim, a preservação de pilares básicos típicos de uma democracia liberal representativa não foi mero simbolismo. Concordando com Lamounier, creio que há dilemas em um processo complexo de legitimação junto a uma sociedade igualmente complexa, como a brasileira da década de 1960, que vão muito além das "aparências". Nesse processo, há um componente simbólico que contribui na busca do consentimento de determinadas parcelas da sociedade, mas não pode ser reduzido a isso. É preciso que, em paralelo, ele assegure a unidade interna da corporação militar, o que uma dominação declaradamente autoritária não seria capaz de fazer. Além do que, com essa preservação, simultaneamente, cria-se uma jurisprudência que "limita" a ação militar nos momentos seguintes, já que, no nível simbólico especialmente, os militares não podem romper com o seu próprio discurso. Soma-se a isso o prestígio internacional e histórico da forma democrática de governo. Se o Brasil se associava às nações democrático-liberais, deveria agir de acordo com tais princípios. Em síntese, havia uma política governamental – ao menos na facção militar castelista – baseada na crença de que, para se manter, o regime precisava de legitimidade junto a uma parcela significativa da sociedade e, em busca disto, tentava associar a sua ação a alguns princípios democráticos. Porém, esta opção não significava um retorno a um regime de "plenitude democrática". O projeto pressupunha o estabelecimento, primeiro, de uma situação híbrida, visando salvar o país do "perigo" comunista, para, em um segundo momento, permitir o retorno a uma "democracia ideal". Entretanto, as contradições da coalizão golpista somadas ao espaço que essa política permitiu aos opositores geraram inúmeros conflitos que marcaram todo o processo de dominação durante aquele período. O papel do Legislativo dentro do projeto de dominação Já existia nos anos 1960 uma tendência histórica de reformulação das funções do Parlamento. As mudanças ocorridas na estrutura do Estado entre fins do século XIX e início do século XX levaram à transformação da relação entre o Legislativo e o Executivo. A partir de então, acusado de baixa eficiência (lentidão, localismo dos parlamentares, deficiência técnica, pouca flexibilidade e resistência a mudanças), iniciou-se o processo de esvaziamento da função legislativa do Congresso. Em paralelo, ocorreu o crescimento das iniciativas legislativas do Executivo. Partidário desse ponto de vista, Roberto Campos, ministro do Planejamento do governo do general Humberto Castelo Branco (1964-1967), afirmava que esta tendência típica das sociedades modernas residiria no fato do Executivo estar mais bem provido de equipes capazes de trabalhar com a crescente complexidade técnica das leis e, também, com a agilidade necessária que as matérias de política fiscal e cambial exigiriam. Ao Legislativo, cuja praxe seria o debate prolongado, caberia a revisão e as emendas a esta legislação, e a avaliação e critica da performance governamental. Embora o caso brasileiro possa ser posto como um exemplo extremo e tenha relação com um contexto político específico, ele também apresenta conexões com essa tendência histórica. Prova disto é que, antes mesmo de 1964, o Parlamento já era um alvo para os reformistas que pretendiam aumentar a eficiência do sistema político do país. A crise político-institucional do início dos anos 1960 havia inviabilizado a formação de uma base de apoio político aos governos e, em reforço, a Constituição de 1946 impôs restrições ao poder Executivo. Além disso, a implementação das políticas era acompanhada por comissões do Congresso. Segundo Wanderley Guilherme dos Santos, estes fatos teriam levado tanto Jânio Quadros quanto João Goulart à constatação de que não era possível governar o Brasil com tais restrições por parte do Congresso. Sem uma base de apoio que fosse suficiente para sustentar o governo, ambos procuraram meios de fazer a balança política pender para o seu lado, mantendo-se, no entanto, dentro de limites constitucionais. Após o golpe, os militares se apressaram em apresentar o movimento com tendo uma missão "revolucionária" e "regeneradora". Para realizar esta tarefa, mantendo um respeito a instituições e princípios democráticos, o regime estabeleceu uma legislação de emergência. O primeiro movimento nesse sentido foi a edição do Ato Institucional n.1, em 9 de abril de 1964, que propiciou a centralização no Executivo, facultando-lhe parte das funções antes exclusivas do Parlamento e limitando o Legislativo no exercício das mesmas. Permitiu, ainda, ao presidente da república, o poder de cassar mandatos e de suprimir direitos políticos. Ao contrário dos governos anteriores, que procuraram saídas constitucionais para se fortalecerem, a ditadura alterava as regras da política democrática, o que lhe permitia superar obstáculos que o Congresso representava às suas intenções. A grande imprensa não nega tais limitações impostas ao Parlamento. Contudo, através dos seus editoriais, percebe-se como estas medidas foram apresentadas não só como necessárias para recondução do país à normalidade econômica e institucional, mas também como fruto da necessidade, sentida inclusive pelos governos anteriores, de alteração da relação entre o Executivo e o Legislativo:
De fato, a relação entre estes dois poderes mudou muito após o golpe de 1964. Não é possível ignorar que ao longo da ditadura o Congresso brasileiro foi enfraquecido e que sua colaboração ocorreu dentro de limites claramente definidos. Também é fato que o "susto" inicial tolheu-lhe os movimentos. Mas, embora a imagem de Legislativo fraco pudesse contrastar com a de um Legislativo preservado para servir à "Revolução", ela sugere ainda que, dentro de um quadro híbrido de dominação, sua manutenção tinha por objetivo legitimar as ações do Executivo. Segundo Klein, acreditava-se que após a modificação em seus quadros e assegurada a fidelidade de seus membros ao movimento "revolucionário", existiriam condições para que o Parlamento exercesse as suas funções em um clima de autonomia relativa. Ou seja, como dinâmica desse processo, a ditadura de classe instaurada no Brasil em 1964 permitiu a sobrevivência do Legislativo, pois, em uma relação de custo/benefício, acreditava-se que o ganho de legitimidade que a preservação de um poder típico de um sistema democrático-representativo, embora enfraquecido e "saneado", seria maior do que o preço a pagar pelas derrotas que ele poderia impor ao governo no plenário. Além disso, ao estabelecer que o processo político deveria contar com a participação do Congresso, a facção militar "castelista" também estava tentando impor limites a uma escalada militarista desejada pela "linha-dura" militar. Esta opção permitiu a existência de canais de negociação entre o Executivo e o Legislativo, nítidos principalmente em períodos de crise política. A opção por participar do jogo político obrigou os novos donos do poder a preocuparem-se com a manutenção de apoio dentro do Congresso e, em consequência, garantiu ao Legislativo um pequeno espaço suficiente para que impusesse obstáculos ao processo de aprofundamento do caráter ditatorial do regime. Ao longo do tempo, a progressiva intensificação da onda repressiva transformou o Legislativo no único fórum onde eram permitidos o debate e a crítica ao regime. Apesar de alguns analistas considerarem a sujeição das proposições do governo militar ao Congresso como uma fachada, creio que é significativo que não se dispensou a chancela democrática do referendum do Parlamento às mesmas, ainda que isso representasse o custo de derrotas ocasionais. Portanto, visando a implantação de um novo sistema de dominação, a legitimação do novo regime junto a setores da sociedade assumiu importância crucial para o Executivo militar no período. Em face da estratégia híbrida desse processo, a manutenção do Legislativo em funcionamento, mesmo que enfraquecido e com suas atribuições reduzidas, tinha duas finalidades básicas: de um lado, oferecer uma imagem democrática do regime; de outro, servir como espaço de negociação com setores da sociedade, pois, em tese, preserva-se a liberdade de escolha dos representantes do povo através da manutenção das eleições para o Legislativo, mesmo que dentro de um quadro limitado de candidatos, e o poder de decisão do povo, ainda mais se pensarmos nos conflitos e negociações políticas que ocorreram entre o Executivo e o Legislativo. Desse modo, os representantes do povo, ao negociarem/fiscalizarem o regime, legitimavam a sua ação e a nova ordem. A mecânica da relação Executivo-Legislativo A instauração da ditadura resultou em uma reestruturação da ordem social, política e econômica da sociedade, inclusive dos fundamentos de poder e autoridade, particularmente, da relação entre o Executivo e o Legislativo. Mas, como já mencionado, esse não foi um processo que tenha ocorrido sem conflitos. A mecânica dessa relação foi marcada, especialmente nos primeiros momentos do regime ditatorial, pela forte e rápida repressão empregada, que desarticulou o Congresso e setores de oposição, permitindo ampla margem de manobra ao Estado. Com a legislação autoritária, os novos donos do poder visavam, entre outros objetivos, adquirir um maior controle sobre o Congresso, de modo a impor todas as medidas que considerassem necessárias e da forma que melhor lhes conviesse. Na grande maioria das vezes conseguiram, especialmente nos momentos imediatamente posteriores ao golpe, ao Ato Institucional n.2 (AI-2), ao recesso do Congresso em 1966 e ao Ato Institucional n.5 (AI-5). No entanto, por precisarem do Legislativo, não o eliminaram. Como resultado, principalmente a partir do final do ano de 1966, outros grupos e formas de oposição surgiram e procuraram recobrar a autonomia do Congresso. Pelo menos até 1968, a facção oposicionista no interior deste poder, por vezes contando com apoio de parlamentares da base do governo, conseguiu interpor-se à concretização dos desígnios da ditadura e reduzir os efeitos discricionários de algumas iniciativas do governo. Um primeiro indicativo da resistência do Legislativo ocorre após a derrota da União Democrática Nacional (UDN) na eleição para governador dos estados da Guanabara e Minas Gerais, em outubro de 1965, na qual, respectivamente, Francisco Negrão de Lima e Israel Pinheiro, candidatos do Partido Social Democrático (PSD) e colaboradores do ex-Presidente Juscelino Kubitschek, foram os vencedores. Em face do resultado do pleito o presidente Castelo Branco, tentando amenizar as pressões originadas no interior do próprio regime, procurou efetivar medidas de fortalecimento do Executivo, mas ciente de que a imposição das medidas afetaria a sua legitimidade, primeiro, tentou a aprovação via Legislativo, mas este se negava a referendar medidas que o atingiam. O governo passou a pressionar pela aprovação, mas o Congresso não dava sinais de que cederia, inclusive porque membros da própria UDN – do grupo pró-Lacerda, que seria atingido pelas medidas em suas pretensões eleitorais – também eram contrários à aprovação. Nos editoriais dos jornais são descritos os capítulos dessa contenda:
A posição contrária do Legislativo em aprovar as medidas enviadas pelo Executivo desconstrói a opinião d'O Estado de São Paulo de que faltaria autoridade aos parlamentares para se oporem aos desígnios do governo. Se, mesmo assim, as medidas foram impostas, isso não invalida a tese de que o Legislativo procurou, dentro das suas possibilidades, barrar a iniciativa do governo, e que o Executivo teria optado, primeiro, pelo diálogo, em virtude de sua necessidade de legitimação. O posicionamento do Congresso fez com que a "linha-dura" intensificasse a pressão sobre o governo. Em caso de derrota, havia uma forte possibilidade de um novo golpe. Desta vez, dos "duros" para tirar o presidente Castelo Branco do poder. De acordo com o jornalista Carlos Castello Branco , esta hipótese já estaria pressuposta no acordo feito por Costa e Silva para debelar a "rebelião" na Vila Militar. A nota de sua coluna informava que:
Outra ilustrativa passagem desta mesma coluna refere-se especificamente à pressão dos "duros" sobre o presidente. Segundo ela,
Esta nota reforça a opinião do jornal O Globo de que, em caso de negativa do Congresso ou o governo impunha as medidas "revolucionariamente" ou "seria atingido em sua autoridade de maneira talvez irremediável". Ao mesmo tempo, desconstrói a tese do Jornal do Brasil de que o governo estava disposto a "acatar a decisão", qualquer que fosse. Tentando evitar que "nos" quebrassem a cara e que fosse atingido em sua autoridade, em 27 de outubro, véspera da sessão plenária que analisaria as propostas, Castelo Branco editou o Ato Institucional n.2, que já estava pronto e preparado para ser promulgado em caso de ser confirmada a negativa. O regime endureceu, no entanto, manteve a sua proposta híbrida, e não fechou o Congresso. No final do ano de 1966, quando do processo que resultou na cassação do mandato de seis deputados federais, intensifica-se a resistência de parlamentares, inclusive de membros do partido governista, a recém-criada Aliança Renovadora Nacional (ARENA), como os presidentes da Câmara de Deputados, Adauto Lúcio Cardoso, e do Senado, Auro de Moura Andrade. Novamente, os jornais denunciaram a resistência do Legislativo em acatar as normas propostas pelo Executivo:
Como é percebido no editorial do Jornal do Brasil, aquela situação poderia fazer com que o poder do presidente deixasse de ser incontrastável, o que punha em risco o próprio regime. Para solucionar esse problema preservando a unidade institucional, o governo novamente fez uso de uma medida autoritária: decretou o recesso temporário do Congresso, através do Ato Complementar n.23, de 20 de outubro de 1966. Para assegurar o cumprimento da medida, o aviso do recesso foi levado ao Congresso pela polícia do Exército. Mas, outra vez, em virtude da necessidade de legitimação dentro e fora do país, não o dissolveu, convocando-o para votar o projeto de uma nova Constituição, o que resultou em um novo capítulo do conflito entre os poderes. A insatisfação do jornal O Estado de São Paulo com essa ideia, formulada ainda em 1965, na esteira da edição do AI-2, é significativa dessa opção do governo:
O governo considerava que o fechamento do Congresso e a vitória da ARENA nas eleições legislativas de 1966 lhe teriam dado mais força para elaboração de uma nova Constituição e imaginava que um Congresso e um partido de oposição, intimidados pelas ações do Executivo, permitiriam a promulgação de uma constituição autoritária. Todavia, convocados para, em um prazo exíguo, aprovar a nova Carta, os parlamentares – entre os quais, novamente, havia membros da ARENA – insatisfeitos com toda a situação pressionaram para apresentar propostas de emendas ao projeto enviado pelo governo.
Percebe-se, mais uma vez, no apoio de O Estado de São Paulo e na contrariedade expressa na opinião de O Globo, a tentativa do Legislativo de se mostrar atuante, na medida do possível, autônomo. O movimento de rebeldia esteve muito longe de "se tornar invencível", como pressupunha O Estado de São Paulo, mas, se na questão da cassação dos mandatos os esforços dos parlamentares não resultaram em êxito, o processo de elaboração do novo texto constitucional é um exemplo de que, por vezes, o Legislativo ao menos conseguiu limitar a gana autoritária do Executivo. Ao fim desse processo, em face da necessidade de chancela do Congresso e da consequente ação dos parlamentares, a Constituição de 1967 herdou a característica ambígua do governo Castelo Branco: de um lado, extremamente repressiva, forneceu ao Estado os fundamentos de uma ordem política institucionalizada, tornando constitucional o caráter "revolucionário" das medidas excepcionais decretadas nos atos institucionais e complementares até então editados, consagrando, assim, o reforço dos poderes presidenciais em detrimento dos do Congresso; de outro, manteve eleições diretas para os governos estaduais e restabeleceu a imunidade parlamentar, incluindo os direitos individuais, associativos e políticos, característica típica da democracia, e não incorporou ao texto a possibilidade de cassação de mandatos e suspensão de direitos políticos, que estavam presentes no AI-2, mas que expirariam com o fim do mandato de Castelo Branco. Essa inclusão permitiu aos opositores um espaço de organização e participação política, fundamental para os desdobramentos políticos dos anos de 1967 e 1968. Os conflitos entre o Executivo e o Legislativo no final do ano de 1966, indicam o momento em que o Parlamento deu mostras mais claras de que procuraria restaurar o prestígio perdido de modo a preservar-lhe a independência e dotá-lo de um novo comportamento em suas relações com o Executivo. As esperanças de que isso ocorreria aumentaram com a promulgação da nova Constituição, em 24 de janeiro de 1967, e com a posse do general Artur da Costa e Silva na presidência da República, em 15 de março de 1967. A partir daquele momento, revigorou-se, ao menos parcialmente, a discussão política no Congresso. Acreditando na promessa do novo presidente de redemocratizar o país, parlamentares procuraram reforçar os poderes do Legislativo e, assim, obter uma participação mais efetiva no processo político. Com esse objetivo, iniciaram uma campanha oposicionista que visava revogar leis decretadas ao longo dos primeiros anos do regime. Esse movimento, a exemplo dos anteriores, contou com apoio de membros da ARENA, insatisfeitos com a situação em que se encontrava o Congresso. Esta cisão demonstrava que um grupo considerável de parlamentares não concordava que o Legislativo exercesse apenas o papel de instrumento dócil nas mãos do governo. Apesar de enfraquecidos, buscavam recobrar os seus poderes originais. Segundo Abranches e Soares, "Esta reação contra a legislação castelista não tinha como objetivo simplesmente afastar leis consideradas autocráticas ou ditatoriais. Havia uma clara consciência da necessidade de revitalizar o Congresso, recobrando os poderes perdidos". Por conta desta percepção, desde o início do governo Costa e Silva, impedidos de legislar, os congressistas acentuaram a atividade fiscalizadora das ações do governo. Essa função foi exercida através de: 1) comissões parlamentares de inquérito, com o intuito de controlar as atividades governamentais; 2) negativas quanto à aprovação de alguns projetos do Executivo; 3) pressões pela revogação da legislação de segurança nacional, pelo restabelecimento das eleições diretas e pela concessão de anistia aos presos políticos e aos cassados; e 4) convocação de ministros de Estado para prestar esclarecimentos acerca das atividades de seus ministérios e requerimentos de informação, que cresceram bruscamente em 1967 e 1968. O crescimento da pressão do Parlamento, como resultado, fez aumentar a tensão entre o Executivo e o Legislativo e romper a base parlamentar de apoio ao governo. Em paralelo, no ano de 1968, aumentaram as manifestações de grupos sociais em protesto contra o governo. Relato contido no jornal O Globo, sempre um partidário do regime, embora procurando deslegitimar o movimento oposicionista, indicava a mobilização de grupos civis insatisfeitos com o regime.
A consequente intensificação da repressão a estas mobilizações fez com que o Congresso Nacional se tornasse o único fórum livre para crítica ao regime. Preservado para oferecer uma imagem de espaço de negociação do governo com a sociedade civil, o Legislativo catalisava e ressoava o clima de inquietação vivido por ela, ampliando o seu papel de denúncia das ações governistas. Parte significativa do Parlamento dava mostras de que não pretendia continuar apoiando as medidas de exceção do Executivo. Apesar de todas as restrições às atividades do Congresso, os parlamentares ainda possuíam o direito à crítica. A inserção do direito à imunidade parlamentar no texto da constituição de 1967 havia eliminado a possibilidade de cassação automática de mandatos eleitorais dos membros do Legislativo tanto na esfera federal, como na estadual e municipal. Desse modo, um parlamentar só poderia ser processado com a autorização da Casa a que pertencesse. Protegidos pela imunidade, parlamentares insatisfeitos com a situação política do Congresso Nacional e do país faziam duras críticas à ditadura. A oposição acreditava que as manifestações poderiam abalar as estruturas do regime, contudo, não avaliou o risco de uma nova investida repressiva, o que, por fim, ocorreu. Para Sérgio Abranches e Gláucio Soares, o regime, cuja força, fundamentalmente, derivava do apoio militar e não da legitimidade civil, não poderia tolerar um movimento organizado a partir das bases e nem que o Congresso assumisse a responsabilidade integral de legislar, pois isto resultaria no abandono do poder pelos militares. Segundo os autores,
Por outro lado, grupos de militares também apresentavam a sua insatisfação com o contexto político. Além dos sinais de desgaste dados pela política híbrida, a heterogeneidade da coalizão no poder expunha as suas diferenças. Essas pressões internas e externas, de acordo com Kinzo,
Em fins de 1968, o regime já não podia conciliar estes dois sentidos distintos. O esfacelamento da coalizão no poder era inegável. E neste clima de intensificação das manifestações populares, da resistência dos parlamentares e do cisma entre os militares que um caso mínimo como o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, do MDB da Guanabara, e o consequente pedido de licença para processá-lo, tornou-se o estopim para ameaças acumuladas. O crescimento das manifestações de rua e o eco que elas tiveram no Congresso Nacional apenas reforçaram os argumentos dos que sempre pleitearam um regime mais duro. O discurso do deputado, inicialmente, passou despercebido pela imprensa, mas foi utilizado como pretexto pela "linha-dura", que pretendia provocar uma grande crise política, provocando uma reação indignada e emocional entre os militares que consideraram a exposição de Márcio Moreira Alves uma ofensa à sua dignidade militar e masculina. Como resultado, os ministros militares requereram ao Supremo Tribunal Federal o julgamento do deputado Márcio Moreira Alves. Assim como em 1965, o conflito evoluiu para uma crise de unidade militar. Costa e Silva relutou, mas, pressionado pelos "duros", como antes fora Castelo Branco, aprovou a abertura de processo para a cassação dos direitos políticos de Márcio Moreira Alves e, também, do deputado Hermano Alves. Contudo, de acordo com a política híbrida, respeitou os trâmites legais e insistiu que a ratificação das acusações deveria vir da própria Câmara. O pedido de licença foi encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, composta por uma maioria de deputados da ARENA, mas as primeiras sondagens indicavam que o requerimento não seria aprovado. Carlos Castello Branco dava como certa a negativa do Congresso, e percebia que Costa e Silva agia pressionado pela "linha-dura" militar. Em nota, analista político afirmou: "a licença pedida não será concedida pela Câmara, segundo previsões gerais. A iniciativa exporá o Congresso ao desgaste de tremenda pressão e o governo à dificuldade de uma batalha sem perspectiva de êxito. O próprio governo parece agir, no episódio, sob pressão militar". Os jornais, mesmo quando contrários ao posicionamento dos parlamentares, também partilhavam da opinião de que o Congresso negaria a licença.
A discussão se alongou durante três meses, e diante da previsível derrota e da pressão da "linha-dura", Costa e Silva convocou, extraordinariamente, a Câmara dos Deputados, no início de dezembro, para alterar a composição da Comissão e, enfim, aprovar o requerimento de suspensão das imunidades dos deputados. Aos membros da Câmara, no entanto, era fundamental manter a imunidade parlamentar. Finalmente, em 12 de dezembro a Câmara dos Deputados realizou a votação e, contando com o apoio de deputados da ARENA e dando o seu último suspiro de autonomia, rejeitou o pedido de licença para processar os deputados. Não havia outra alternativa para o Legislativo. Aos membros do Congresso era fundamental manter a imunidade parlamentar. Conceder licença para processar os deputados geraria, em consequência, uma ameaça a todos os parlamentares. Ou, como disse Carlos Castello Branco, dois meses antes da concretização da derrota do governo,
Em consequência da ação da Câmara dos Deputados, o Congresso foi punido. Mas, de acordo com Carlos Castello Branco, "A Câmara, em tudo isso, só teve um consolo, o de cair lutando, manifestando-se na plenitude de sua soberania. A festa do Congresso não durou, porém, mais de 24 horas". Com a recusa, a "linha-dura" pressionou Costa e Silva a tomar atitudes. Apesar de ter dito que o Congresso era "intocável" e que suas decisões deveriam ser respeitadas, o presidente capitulou e o resultado foi a edição do Ato Institucional n.5, no dia 13 de dezembro de 1968. Em complemento, foi editado o Ato Suplementar n.38, pondo o Congresso em recesso por tempo indeterminado. Nos meses subsequentes foi feita nova "limpeza" não só no Legislativo, mas em todos os locais onde pudesse haver supostos focos de oposição, como, por exemplo, no interior das próprias forças armadas. Além disso, através de atos e decretos ampliou-se o poder do Executivo. O que cabe salientar é que, antes da opção pela força, o governo investiu em negociações com o Congresso para conseguir autorização para punir o deputado Márcio Moreira Alves. Creio que o fato do Executivo ter imposto a sua vontade de modo arbitrário sempre que foi contrariado pelos parlamentares não invalida a tese de que o regime ditatorial pretendia legitimar-se junto à sociedade civil por meio da construção de uma imagem democrática sobre si mesmo. Com esse objetivo, adotou uma política de preservação de instituições típicas da democracia representativa. Dentre elas, o Legislativo que, em funcionamento, serviu como espaço de diálogo junto à sociedade civil. Por esse motivo, mesmo diante das crises e apesar dos poderes que possuía, via de regra, a ditadura procurou, primeiro, chegar a uma fórmula conciliatória com este poder. Além disso, apesar de, a cada novo embate com o Executivo, o Legislativo ser seguidamente atingido pelo arbítrio, creio que o conflito entre os poderes indica que ele não serviu de mero instrumento aos interesses da ditadura. Parlamentares, apesar dos poucos recursos que a Constituição lhes garantia, procuraram preservar a independência e, insatisfeitos com as medidas autoritárias do regime e com o enfraquecimento do Congresso, resistiram. A constatação de que a Câmara estaria se opondo à licença para cassação e enfrentando o governo; a contrariedade do próprio líder do governo, senador Daniel Krieger, quanto ao pleito do Executivo; os obstáculos que o MDB estaria criando na Câmara e no Senado; a união de parlamentares da ARENA à oposição, impondo derrotas ao governo; a necessidade de substituição de membros da Comissão de Justiça para que a licença fosse aprovada; e a recusa final no plenário da Câmara dos Deputados são exemplos dessa insatisfação e da conflituosa relação entre o Executivo e o Legislativo durante os primeiros quatro anos da ditadura. Todavia, em fins de 1968, os custos da preservação do Congresso superavam os benefícios que ela poderia trazer. Em outras palavras, o sistema político até então implantado era híbrido demais e concedia um espaço à oposição que impedia o controle absoluto por parte do governo, que, aliás, não conseguia submeter nem os parlamentares da própria ARENA. Do outro lado, setores militares não se predispunham a respeitar esse espaço e, à força, procuraram impor esse controle. Naquele ano, a política híbrida de dominação, que mesclava um autoritarismo congênito a resquícios de legalidade democrática, apresentou claros sinais de falência. Chegava o momento em que, diante de interesses intestinos conflitantes, o governo deveria decidir ou pela face liberal ou pelo reforço do caráter autoritário do regime. A escolha pela segunda opção representou a ruptura da política adotada pelo governo. Segundo Klein, haveria uma incompatibilidade entre a nova legalidade, emersa da instauração do regime e baseada em princípios relacionados à segurança nacional, e aquela típica da situação anterior, visto que esta nova ordem legal restringia a legitimidade conferida pelas instituições políticas que haviam sido mantidas. Portanto, a política contraditória adotada pós-1964 foi marcada pelo uso de uma linguagem democrática e por uma prática repressiva por parte do Estado, o que diminuiu sensível e progressivamente a autonomia das instituições políticas, inclusive o Legislativo. Alterando ou reduzindo o desempenho das funções desse poder, debilitou as suas capacidades de legitimação. Reincidentemente optando pelo uso da força, o Estado sofreu sequentes perdas de legitimidade e se isolou, o que o tornou, gradualmente, mais restrito à sua base militar de apoio. Contudo, ao optar pelo arbítrio escancarado o regime não abdicou, mas pôs em reserva a intenção original de busca de uma legitimação democrática. Mesmo perdendo parte substancial de sua legitimidade junto à sociedade civil, nem após o AI-5 o Estado deixou de buscá-la. Exemplo disto é o esforço, já no primeiro semestre de 1969, para a redação de uma nova Constituição que justificasse legalmente a autoridade arbitrária e o pleito pela chancela do Congresso para os seus atos discricionários, como sugere a questão que envolve a reconvocação do Legislativo quando do processo de escolha do sucessor de Costa e Silva. Por fim, é preciso deixar claro que não houve aqui a pretensão de afirmar que a única forma de legitimação possível é aquela baseada na preservação de princípios democráticos. Tampouco que esta, e em particular a preservação do Legislativo, foi a principal forma buscada pela ditadura instaurada em 1964. Esse processo é muito mais complexo e envolve múltiplos fatores. O que se intentou foi demonstrar, com base nesse exemplo, como a busca por uma legitimação baseada na defesa e preservação de princípios democráticos foi uma das características centrais do projeto de dominação instaurado no Brasil a partir de 1964, em especial entre 1º de abril daquele ano e 13 de dezembro de 1968. Artigo recebido em: 30/03/2011. Aprovado em: 21/12/2011.
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