A educaçao popular e educação libertadora

Para uma melhor compreensão sobre educação popular e libertadora, nesta seção serão apresentadas algumas das principais obras do educador Paulo Freire e suas idéias. A proposta político-pedagógica para uma educação popular e libertadora de jovens e adultos trabalhadores deve estar baseada no reconhecimento e respeito de toda a bagagem de vivências que o educando acumula ao longo de sua vida e trás consigo para a sala de aula. Principalmente, deve ter como premissa o respeito quanto ao tempo e espaço de cada sujeito, assim como a percepção de que o conhecimento nesta modalidade deve ser norteado pela construção coletiva de saberes entre educando e educador, em qualquer que seja o espaço formativo.

Todavia, esse “saber de experiência feito” - como consta nas obras de Luís de Camões e de Paulo Freire - nem sempre é reconhecido pela sociedade e, principalmente, pelo professor. Se o professor só transmite conhecimento aos seus alunos, sem que haja troca ou compartilhamento, esse saber passa a ser saber de “experiência transmitida” (FREIRE, 2011). É importante lembrar, ainda, que o jovem e o adulto são sujeitos concretos, dotados de consciência, vontade, e principalmente são seres criadores.

Paulo Freire, ao lembrar-se de sua infância e de como fora seu processo de alfabetização, enfatiza que a “leitura de mundo precede a leitura da palavra”. Para o autor, o ato de ler não se resume na decodificação da palavra ou da escrita, exige uma compreensão

crítica. Freire, quando ainda não lia a palavra, já lia o pequeno mundo no qual vivia: rodeado de árvores, brincadeiras com os irmãos, canto dos pássaros, percepção ativa do vento, das árvores, da chuva, da forma das folhas, do cheiro das flores, do contorno dos frutos, do mau humor de Joli (o cachorro) com os gatos, na linguagem com os mais velhos em seu “mundo imediato”. Foi assim que Paulo Freire foi alfabetizado: à sombra das mangueiras, com palavras de seu mundo e não do “mundo maior” de seus pais. O chão era seu quadro-negro e os gravetos seu giz. Só mais tarde, já alfabetizado pelo mundo com ajuda de seus pais, aprendeu - com o auxílio de sua professora - a leitura da palavra, porém sem a ruptura da leitura de mundo. Aprendeu, então, a leitura da “palavramundo”. (FREIRE, 1989, p. 11)

De acordo com Freire (2011), a pedagogia libertadora deve ser forjada com os oprimidos e não para os oprimidos; assim como, a transformação deve ser com eles e não para eles. O grande dilema para o autor está no questionamento sobre de que forma esses mesmos oprimidos que “hospedam” o opressor dentro de si, poderão participar da pedagogia de sua própria libertação. Liberdade requer autonomia e vice versa. Para Freire esse processo implica, obrigatoriamente, um sujeito ativo e responsável. Portanto, essa libertação pode-se transformar em um parto doloroso para o mundo. Um renascimento. Processo pelo qual, ao se libertar do opressor, a sombra da opressão abre espaço para que a autonomia tome seu lugar.

Esse é o preço da libertação: ser autônomo, emancipado, responsável por suas escolhas, responsável também pelo outro (inclusive pelo opressor), responsável pelo mundo que o cerca, por isso, os oprimidos tem “medo da liberdade” (FREIRE, 2011, p. 45). Vale ressaltar que para o autor essa liberdade não é doada e sua busca deve ser constante, então, é preciso que os oprimidos corram o risco de assumir a luta por sua liberdade. Afinal, ainda segundo o autor, os oprimidos devem lutar pela liberdade porque não a tem.

Freire (2011), na tentativa de compreender a superação da contradição entre opressor e oprimido, afirma

a violência dos opressores, que os faz desumanizados, não instaura uma outra vocação – a do ser menos. Como distorção do ser mais, o ser menos leva os oprimidos, cedo ou tarde, a lutar contra quem os fez menos. E esta luta somente tem sentido quando os oprimidos, ao buscarem recuperar sua humanidade, que é uma forma de criá-la, não se sentem idealistamente opressores, nem se tornam, de fato, opressores dos opressores, mas restauradores da humanidade em ambos. E aí está a grande tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores. (FREIRE, 2011, p. 41)

Freire (2011, p. 52), fazendo um alerta sobre a “falsa generosidade” e o assistencialismo, afirma que somente na solidariedade é possível se fazer uma práxis autêntica. Para o autor, a práxis é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-

lo. Sem ela, é impossível a superação da contradição “opressor-oprimido”. Mas, é preciso que nesta práxis o oprimido se comprometa com sua própria transformação, pois, somente os oprimidos se libertando são capazes também de libertarem seus opressores. Uma vez que os opressores nem libertam os outros, nem libertam a si mesmos. Infelizmente, segundo o autor, o opressor se vale da dependência emocional que exerce sob os oprimidos para provocar-lhes ainda mais dependência.

O caminho para Freire (2011, p. 77) é uma pedagogia humanizadora “em que a liderança revolucionária, em lugar de se sobrepor aos oprimidos e continuar mantendo-os como quase “coisas”, com eles estabelece uma relação dialógica permanente”. O autor reafirma ser preciso que os oprimidos se engajem em sua libertação.

Na contramão da educação popular e libertadora, surge a visão bancária. Neste tipo de concepção, o educando não é mais sujeito de sua própria ação, ele não é conduzido a pensar de forma crítica a realidade que o cerca. A leitura prévia de mundo não é considerada. Na educação bancária a prática pedagógica está envolta com a mecanização, a memorização e a transferência de conteúdos. Esses mesmos conteúdos são somente reproduzidos sem serem digeridos ou ruminados pelos educandos. Os educandos já não pensam, apenas reproduzem o pensamento dos outros. São “depositórios” de conteúdos, posteriormente armazenados, arquivados, esquecidos no tempo.

Como só reproduzem o que também lhes é reproduzido por seus professores num ciclo vicioso, os educandos não são capazes de dialogar com os conceitos nem trazê-los para seu mundo visando transformá-lo. A ação política aliada à prática pedagógica simplesmente não acontece. Não há ação criadora, não há liberdade nem autonomia, não há consciência crítica, não há problematização, não há revolução ou transformação, nem de sua realidade e nem tampouco de informação em saber. Aliás, entende-se que “só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem no mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2011, p. 81).

É preciso que os educandos se rebelem contra a educação bancária, por isso, Freire (1996) afirma que

o necessário é que, subordinado, embora, à prática “bancária”, o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o “imuniza” contra o poder apassivador do "bancarismo". Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. (FREIRE, 1996, P. 13)

Num diálogo criativo e “recreativo” entre Freire e Shor (1987), os autores levantam questões importantes sobre o cotidiano do professor e suas inquietações: a educação e o educador libertador; diferenças entre rigor e ser rigoroso, autoridade e autoritarismo; como motivar os educandos; as especificidades do currículo; mecanização, memorização de conteúdos e transferência de conhecimento; pedagogia do diálogo e cultura do silêncio; excesso de leituras sem compreensão; diferenças entre educador e educando; política e educação; transformação social, entre outros temas que merecem ser discutidos para que a educação autêntica de fato aconteça. Para os autores o educador „‟precisa ser um aprendiz ativo e cético em sala de aula, que convida os estudantes a serem curiosos e críticos...e criativos‟‟ (FREIRE; SHOR, 1987, p. 13).

Segundo Freire (2011, p. 109), o diálogo “é este encontro dos homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu. [...] Por isso, o diálogo é uma exigência do existencial”. Entretanto, no entendimento do autor, para haver diálogo é fundamental que haja um profundo amor aos homens e ao mundo. Amor também significa respeito às diferenças.

Sobre a importância da dialogicidade, Freire (1997, P. 96) argumenta que “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”.

Assim, Freire (1997) aponta que seria preciso ter

uma educação que possibilitasse ao homem a discussão corajosa de sua problemática. De sua inserção nesta problemática. Que o advertisse dos perigos de seu tempo, para que, consciente deles, ganhasse a força e a coragem de lutar, ao invés de ser levado e arrastado à perdição de seu próprio “eu”, submetido às prescrições alheias. Educação que o colocasse em diálogo constante com o outro. Que o predispusesse a constante revisões. A análise crítica de seus “achados”. A uma certa rebeldia. Que o identificasse com métodos e processos científicos (FREIRE, 1997, P. 90).

Não há educação libertadora sem dialogicidade, pois é na troca de saberes entre educador e educando que o conhecimento é produzido. Nos círculos de cultura não existe hierarquia entre os “sábios” e os “não-sábios”. Em círculo, todos são iguais, todos se enxergam, todos se mostram como são. Todos aprendem e todos ensinam num processo de compartilhamento de saberes e vivências. Na prática da pedagogia dialógica, possibilitada pelos círculos de cultura, o conhecimento é forjado coletivamente.

Freire acreditava que na leitura da realidade poderíamos mudar o mundo. No pensamento de Paulo Freire a educação, por si só, não transforma o mundo. São os homens, - livres, autônomos, emancipados, conscientes, críticos e criativos transformados pela educação - que podem, no coletivo, transformar o mundo.