Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina

Neste 2 de abril os argentinos recordam o início da Guerra das Malvinas, um árido e remoto arquipélago do Atlântico Sul

Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina
As Malvinas são uma reivindicação permanente dos governos argentinos. Mas os kelpers — seus habitantes, descendentes de escoceses, galeses, irlandeses e ingleses — rejeitam subordinação a Buenos Aires. Foto: Danny Lawson - PA Images / PA Images via Getty Images

As Ilhas Malvinas foram descobertas, segundo diversas especulações, pelo navegante florentino Américo Vespúcio no início do século XVI, a serviço da Coroa espanhola. Além dele, navegantes holandeses as teriam avistado e até pescado em suas redondezas, bem como os ingleses.  

2 – PRIMEIROS COLONIZADORES CHEGAM NAS “MALOUINES” 

A primeira ocupação foi protagonizada quando o francês Louis Antoine de Bougainville desembarcou nas ilhas, em fevereiro de 1764. Seu navio e seus tripulantes eram de Saint-Malô. Por esse motivo, Bougainville as chamou de “Malouines” (que em espanhol posteriormente se transformaria em “Malvinas”). 

3 – OS INGLESES, OS COLONIZADORES SEGUINTES

Os franceses não suspeitavam que, enquanto colonizavam o lado leste da ilha, os ingleses desembarcariam em 1766 no lado oeste. As duas comunidades cresceram simultaneamente sem tomar conhecimento uma da outra durante bastante tempo.  

Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina
Imagem de satélite das Ilhas Malvinas Foto: Gallo Images / Getty Images

4 – OS ESPANHÓIS APARECEM E RECLAMAM TUDO 

O governo espanhol, que nunca havia ocupado as ilhas, ao ser informado da presença francesa ali, reclamou o arquipélago. O rei Luis XV aceitou o pedido e entregou sua parte à Espanha. Em 1767 os espanhóis se instalaram. Os ingleses, sem fazer acordo algum e sem renunciar ao arquipélago, partiram em 1774.

Mas os espanhóis não estavam satisfeitos com o arquipélago. “Estas ilhas não produzem coisa alguma. Neve, granizo e gelo. O ar está sempre úmido. Os alimentos daqui restringem-se a peixe. É para mim este um país cruel. O reino deverá subsidiá-lo.” Estas palavras, do frei Felipe de Mena, foram pronunciadas em 1767, quando nem bem os espanhóis ocuparam as ilhas.  

Os espanhóis permaneceram até 1811, quando abandonaram o local. Durante mais de uma década, os únicos colonizadores foram os pinguins. 

5 – SURGEM OS ARGENTINOS, MAS POR BREVE TEMPO 

Durante os primeiros anos da independência argentina, o novo governo ignorou as Malvinas e somente se ocupou delas em 1821. Concretamente, quem deu bola às ilhas foi o governo da província de Buenos Aires e não a “Argentina”, já que, naquela época, o país não estava constituído como tal. 

Portanto, a ocupação das Malvinas foi uma decisão dos bonaerenses, que fundaram Puerto Soledad. Boa parte dos colonos desembarcaram ali em 1827. Mas sua presença seria breve. 

6 – VOLTAM OS INGLESES 

Na mesma época em que os argentinos, menos de 300 pessoas, começavam a colonizar o árido arquipélago, as praias das Malvinas começaram a ser visitadas com frequência por caçadores de peles dos Estados Unidos e da Inglaterra. Isso gerou alguns conflitos com o governo local. 

No dia 2 de janeiro de 1833, chegam os ingleses — de novo. Dessa vez para ficar. A fragata Clio ancorou diante de Puerto Soledad e, depois de apontar seus canhões, exigiu ao governador enviado por Buenos Aires, José Maria Vernet (que era um alemão), que partisse dali, com a população, levando seus bens.  

7 – OS ARGENTINOS RETORNAM 

Quase um século e meio depois, a Argentina voltou a ocupar as Ilhas Malvinas, em 1982. Porém, de forma transitória.  

As tropas que protagonizavam a denominada Operación Rosario desembarcaram às 23 horas do dia 1º de abril e avançaram em direção a Stanley, capital das ilhas. No entanto, por uma questão de marketing bélico-político, a fim de evitar piadas sobre o dia 1º de abril — Dia da Mentira e dos bobos na maior parte do planeta (embora não no mundo hispano-falante, onde o Dia da Mentira é 28 de dezembro), a data oficial do desembarque é 2 de abril.  

Ao raiar do sol, o Exército argentino entrou em Stanley e, após um breve tiroteio, conseguiu a rendição do minúsculo contingente britânico que ali estava. A ditadura argentina começava a administrar o único território com normas democráticas na época em todo o Cone Sul, com países governado por regimes militares. O regime argentino, acostumado a torturar no continente, torturou até seus próprios soldados nas ilhas. 

A segunda presença argetina nas ilhas durou apenas 74 dias, de 2 de abril a 14 de junho. 

8 – GALTIERI BATIZA, REBATIZA E REREBATIZA 

No primeiro dia da nova presença argentina nas Malvinas, Leopoldo Galtieri, presidente argentino à época, rebatizou Stanley de “Puerto Soledad”, o poético nome original do vilarejo que havia sido a capital durante a administração argentina entre 1820-1833. No entanto, no segundo dia, Galtieri muda de ideia e o vilarejo é rerebatizado de “Puerto Rivero”, em homenagem a um suposto “maquis” gaúcho — segundo uns, bandoleiro segundo outros — que teria resistido aos ingleses ao longo de vários meses. No entanto, no terceiro dia, Galtieri mais uma vez muda de ideia e rererebatiza o aglomerado urbano de “Puerto Argentino”. 

Apesar da volta da democracia e a revisão histórica dos governos civis, a cidade, na nomenclatura cartográfica argentina, continua com o nome colocado pelo ex-ditador. 

9 – LEVAR A GUERRA À EUROPA 

Operação Algeciras foi o nome código de uma tentativa do general Galtieri de levar a Guerra das Malvinas até a base britânica em Gibraltar, na Europa. O contigente que afundaria os navios ingleses compôs a missão com dois grupos que até pouco tempo haviam se odiado mutuamente: os guerrilheiros montoneros e os militares argentinos.  

Na missão estava Máximo Nicoletti, um ex-montonero que depois de preso pelos militares havia delatado grande parte de seu grupo. Os integrantes viajaram para a Espanha três semanas depois da invasão argentina às Malvinas. Os explosivos foram até Madri via mala diplomática. No total, eram duas minas submarinas de fabricação italiana, com 25 quilos de TNT em cada uma.  

Dali, partiram em carro para o sul da Espanha. No meio do caminho compraram um bote de borracha. O plano consistia em que os membros da armada platina fingissem ser pescadores espanhóis, que circulariam pela baía de Algeciras, diante da base de Gibraltar. Parte do grupo mergulharia na água e colocaria as bombas no casco dos navios. Mas os argentinos nunca chegaram sequer a subir no bote. Antes de chegar a Algeciras, um delegado espanhol viu o grupo, que era mal-encarado. Ele imaginou que se tratassem de narcotraficantes (eles haviam realizados grandes gastos em Málaga e estavam chamando a atenção) e colocou todos na cadeia. E assim acabou a Operação Algeciras. 

10 – UMA TRAGÉDIA NAVAL 

A principal preocupação dos britânicos na área naval era o porta-aviões argentino 25 de Mayo . Todavia, o alvo final foi o cruzador Belgrano , o maior navio da armada, que no dia 2 de maio foi torpedeado pelo submarino Conqueror. O navio foi a pique levando consigo 323 marinheiros. Outros 700 foram resgatados em meio à uma tempestade em alto mar. 

Os documentos indicam que no dia 5 de maio, três dias após o afundamento do Belgrano , o então ministro da Defesa britânico, John Nott, afirmou durante um jantar de representantes da Otan que “a decisão política foi tomada por um grupo de ministros, liderados pela primeira-ministra”. 

A decisão do ataque foi tomada durante um almoço da primeira-inistra britânica Margareth Thatcher com seus ministros em Chequers, a residência de fim de semana da Dama de Ferro. O governo britânico decidiu que qualquer navio ou submarino argentino que implicasse em uma ameaça à Task Force poderia ser afundado, mesmo que estivesse fora da área de exclusão criada por Londres para delimitar o conflito ao redor das Malvinas. 

O Belgrano, originalmente “USS Phoenix”, foi construído em 1935. Sobrevivente do ataque japonês a Pearl Harbor de 1941, foi revendido à Argentina após a Segunda Guerra Mundial pelos EUA. Embora antiquado, seus poderosos canhões atemorizavam a Royal Navy. Seu afundamento é encarado pelos argentinos como um crime de guerra. 

Diplomatas argentinos, durante décadas, argumentaram que o afundamento do Belgrano foi proposital, com a intenção de chocar os argentinos e impedir qualquer alternativa de saída negociada para o conflito. 

Os documentos revelam detalhes sobre os esforços de outros governos para tentar uma trégua entre Londres e Buenos Aires, entre eles, a proposta do presidente mexicano José López Portillo de organizar, em meados de maio, um encontro entre o general Leopoldo Fortunato Galtieri e Margareth Thatcher no balneário de Cancún. O afundamento do Belgrano acabou com essa possibilidade.

Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina
Cemitério Militar de Darwin, em Malvina Oriental, nas Ilhas Malvinas. Foto: NurPhoto / NurPhoto via Getty Images

11 – ARGENTINOS TORTURANDO ARGENTINOS 

A ditadura argentina exportou às Ilhas Malvinas seu costume de torturar pessoas. Paradoxalmente, os oficiais torturavam seus próprios soldados.  

A principal tortura realizada era o “estacamento”, que consistia em cavar uma área de 50 centímetros de profundidade e ali amarrar um soldado sem roupa, deitado sobre a neve ou o solo gelado (as temperaturas podiam chegar até 27 graus célsius negativos), no meio do campo de batalha (ou em suas proximidades). O soldado era amarrado com pernas e braços abertos e abandonado ali durante 24 horas. O castigo podia ser aplicado por motivos absurdos, como, por exemplo, a perda de um capacete. 

Outra modalidade aplicada pelos oficiais era a de abandonar soldados para que morressem de fome. Existem quatro casos de soldados provenientes da província de Corrientes que morreram de fome pela suspensão do fornecimento de comida ordenada pelos oficiais. No entanto, nas listas do Exército argentino, os soldados que morreram de inanição foram registrados como “baixas em combate”.  

Vários ex-combatentes, após a guerra, declararam que “o principal inimigo não eram os ingleses, mas sim os próprios oficiais argentinos”. 

Diversos oficiais que cometeram crimes contra seus soldados nas ilhas já haviam cometido graves violações aos Direitos Humanos no continente contra a população argentina. 

Hernán Dobry, autor de Rabinos nas Malvinas — investigação que fez sobre as torturas que os oficiais argentinos aplicaram contra soldados judeus compatriotas nas Malvinas — sustenta que, nas ilhas, os oficiais castigavam com mais dureza os soldados judeus, que eram acusados de terem “assassinado Cristo”. 

12 – ESTATÍSTICAS DA GUERRA 

- Argentinos mortos em combate: 649 - Feridos argentinos: 1.068 - Prisioneiros argentinos: 11.313 - Britânicos mortos em combate: 258 - Feridos britânicos: 777 - Prisioneiros britânicos: 115 - Kelpers (residentes das ilhas) mortos durante os combates: 3 (morreram nos últimos dias da guerra por causa de bombardeios britânicos a Port Stanley)

- Suicídios: Os centros de veteranos indicam que, desde o fim da guerra, mais de 650 ex-soldados suicidaram-se por estar mergulhados em profundo estado de depressão. Esse número é superior ao de soldados mortos em batalhas nas ilhas, que foram um total de 326; outros 323 morreram quando um submarino britânico torpedeou o cruzador General Belgrano .

13 – OS INGLESES VOLTARAM E AINDA ESTÃO LÁ 

Desde a Guerra das Malvinas, as ilhas continuam sob domínio britânico. Os kelpers, denominação dos ilhéus, afirmam que pretendem continuar como súditos da Coroa. Outra hipótese que volta e meia especulam é a de proclamar a independência. Os governos argentinos de plantão costumam ignorar os 3.398 kelpers que ali residem e afirmam que negociará a soberania das Malvinas de forma direta com Londres. Na capital britânica as autoridades afirmam que não negociarão assunto algum sobre as Malvinas sem a concordância dos ilhéus.  

Os kelpers reforçam o recado, explicando que vivem em um welfare state, com saúde e educação pública de qualidade, segurança policial não truculenta e não corrupta, sem inflação e sem escândalos de corrupção. Por ter leis como as da Grã-Bretanha, o aborto está legalizado nas ilhas, enquanto que na Argentina está proibido. Além disso, a renda per capita dos kelpers é a quarta maior do mundo, de US$ 96.962 por ano. 

O impasse permanece. 

14 – FRASES SOBRE AS MALVINAS 

“Las malvinas son y serán argentinas” (“As Malvinas são e serão argentinas” — slogan repetido permanentemente nas escolas primárias aos alunos desde os 6 anos de idade) 

“Que venga el principito!” (“Que venha o principezinho!” — General Galtieri, quando soube durante a guerra que o príncipe Andrew faria parte da Task Force) 

“Es la pelea de dos calvos por un peine” (“É a briga de dois carecas por um pente” — Jorge Luis Borges, sobre a futilidade de uma guerra por um arquipélago árido) 

“Malvinas para los pingüinos!” (“Malvinas para os pinguins” — camiseta impressa no Brasil durante a guerra) 

“Gotcha!” (“Te peguei!” — manchete de jornal britânico quando os ingleses afundaram o cruzador General Belgrano ) 

“Estamos ganando!” (“Estamos vencendo” — título de vários jornais e revistas em Buenos Aires poucos dias antes da derrota. Nos últimos dias, sem admitir a iminente derrota, estampavam o título “Continuamos vencendo”) 

15 – POPULAÇÕES NAS MALVINAS 

- 1 milhão de pinguins - 600 mil ovelhas

- E, além deles, 3.398  Homo sapiens . Uma densidade de 0,25 habitante por quilômetro quadrado

- 70% dos habitantes são descendentes de escoceses e galeses

- Os habitantes civis convivem com um volume de 1.000 soldados da base de Mount Pleasent

16 – CURIOSIDADES

Os argentinos, na prática, só tiveram autoridade formal sobre as ilhas entre 1820 e 1833, um total de 13 anos. Os britânicos estão lá há 186 anos. 

Não ficou uma população “étnica” argentina a partir da conquista britânica 

17 – DISTÂNCIAS 

As ilhas estão a 550 quilômetros do litoral argentino
A distância da Grã-Bretanha das Malvinas é de 12.800 quilômetros

Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina
Localização das Ilhas Malvinas Foto: Encyclopaedia Britannica / Getty Images

18 – E DENOMINAÇÕES 

O nome da capital das ilhas é Stanley de acordo com a denominação britânica e dos ilhéus. Para os argentinos, desde 1982 a cidade chama-se “Puerto Argentino”. 

Os ilhéus autodenominam-se islanders (ilhéus). O termo kelper, utilizado na Grã-Bretanha e na Argentina, é considerado desrespeitoso pelos habitantes das ilhas, pois é o nome das algas que crescem com abundância no litoral do arquipélago. 

19 – EFEITOS DA GUERRA

A derrota levou a ditadura militar argentina ao colapso; 15 meses depois o país tinha eleições livres e voltava à democracia. 

A vitória salvou o governo de Margareth Thatcher da crise política e lhe conferiu elevada popularidade que permitiria que permanecesse no poder por longo tempo. 

A indústria bélica aproveitou o conflito bélico para observar o funcionamento — em uma guerra real — de uma série de novos armamentos, entre eles o míssil francês Exocet. 

Graças à neutralidade do Brasil na guerra, a Argentina começou a deixar de ver o país vizinho como um potencial perigo bélico. Anos depois, a aproximação criou um clima favorável para a formação do Mercosul. 

20 – ESCOLAS DE INGLÊS APEDREJADAS, MAS CLUBES DE FUTEBOL INCÓLUMES 

Apesar da  anglofobia que tomou conta de vários setores da sociedade argentina no meio do frenesi da Guerra das Malvinas, nem a ditadura militar e sequer os mais acirrados manifestantes propuseram atacar os clubes de futebol que ostentavam (e ainda ostentam) sonoros nomes ingleses. 

Enquanto o monumento Torre dos Ingleses era alvo de incêndios; escolas de inglês eram atacadas com coquetéis molotov; bares e cafés com nomes alusivos à Grã-Bretanha eram apedrejados — e ruas com nomes ingleses eram rebatizadas —; os estádios dos times ficaram incólumes, longe de qualquer anglofobia. 

Os torcedores talvez nem sequer perceberam que os nomes do “River Plate” (Rio da Prata em inglês) e Boca ‘Juniors’ eram ingleses (ou, se perceberam, talvez consideraram que seria demasiada heresia alterar os nomes dos clubes). Além dos óbvios River Plate e Boca Juniors, na lista dos times que ostentam nomes ingleses estão: 

- Racing Club  - Newell’s Old Boys  - All Boys  - Banfield  - Chaco For Ever  - Douglas Haig 

- Temperley… entre outros. 

Mas, apesar da permanência dos britânicos nomes, os dois gols da seleção argentina mais recordados pelos torcedores não são contra o rival Brasil, mas, sim, os dois gols feitos por Diego Armando Maradona na Copa do México contra a Inglaterra, em 1986 — um deles de mão.

Por que as ilhas Malvinas ou Falklands foram importantes para o final da ditadura militar Argentina
Soldados veteranos da Guerra das Malvinas participam de uma cerimônia em um jogo entre River Plate e Quilmes, em 2017 Foto: Marcelo Endelli / LatinContent/Getty Images