A impressão que se tem da vida cotidiana

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Você já teve a impressão de estar vivendo anestesiado? Quando isso acontece, praticamente, a vida em si não é tão prazerosa.  Assim, viver conectado ou fazer algo que ocupe a sua mente funciona como um refúgio constante do cotidiano. 

E agora, principalmente nos dias de quarentena, mais do que nunca a vida tem mudado e a tecnologia e a inteligência artificial têm consumido exaustivamente o tempo das pessoas. Ambas se integraram tão intensamente com a vida comum como meios e até fontes de relacionamentos e de hábitos que influenciam diretamente no temperamento e na identidade do indivíduo e no reconhecimento do outro.

Conhecer a influência da tecnologia e da inteligência artificial, que inclusive só tem a expandir, é extremamente importante para entender como as pessoas têm se relacionado consigo mesmas, com o outro e com o evangelho.

A necessidade é urgente para compreender e lidar com as consequências da cultura individualista do século XXI na presente sociedade secularizada, que reflete na vida de pessoas comuns, inclusive de cristãos. 

A intenção é levá-lo a perceber as crenças que estão por trás dos efeitos externos da hiper exposição, da busca exacerbada por sensações e dos hábitos que sustentam tudo isso. Isto, consequentemente, resulta na busca infinita por sentido e realização, apesar da repleta valorização da autonomia do eu e da procura pela liberdade exacerbada, ambas resultantes do secularismo, que se vive hoje.

O intuito aqui é trazer para você uma reflexão, de maneira introdutória, sobre a problemática social que respinga inevitavelmente na teologia e nas humanidades. E vai ser muito enriquecedora a forma como o evangelho denuncia a problemática, que por vezes será a experiência de estar diante do espelho, mas que embeleza a vida como nenhuma outra fórmula.

Hábitos que fazem ser quem você é

É interessante pensar que logo de manhã ao acordar, as pessoas estão inconscientemente começando não só o dia, mas uma série de rituais e hábitos que elas carregam e que falam muito sobre a forma como elas vivem e no quê de fato acreditam. (1)

Elas iniciam o dia inocentes do fator que causa um efeito como de um sedativo de suas atividades cotidianas. Celular. Essa tecnologia inovadora e tão poderosa em suas mãos. Neste momento, o mundo se abre em uma telinha super recheada de conhecimento, informações, entretenimento e notícias.

Não é difícil ficar horas consultado as novidades e o turbilhão de sensações produzidas por aquele aparelho. Consultá-lo é uma atividade automática e seus efeitos são imediatos. Quando se está de mau humor, celular. Já quando o tédio bate, as redes sociais são os lugares mais visitados para poder se distrair. Quando se está fazendo qualquer coisa e deseja evitar o silêncio, os streamings em áudio são a solução. E, finalmente, para lidar com a espera, os vídeos do YouTube são peça chave para não se sentir sozinho.

Não necessariamente nesta ordem, mas elas, as plataformas digitais e a computação inteligente, definitivamente são refúgio seguro para uma alma moderna inquieta. Ah e como são essenciais para se ocupar ao invés de encarar a falta de uma comunicação clara dentro de casa, por exemplo.

Esses hábitos de volta e meia esquecer-se da vida real e voltar-se continuamente para a vida virtual e artificial, funcionam como distrações e anestesias da vida ordinária. A necessidade de estar sempre conectado e atento às últimas novidades do dia, empolgado e entretido são escapes, muitas vezes da vida imperfeita, de suas nuances e arestas mais indesejadas.

A tecnologia e a inteligência artificial: bons recursos ou inimigas da vida real?

É importante deixar claro que a tecnologia não é ruim, e muito menos deve ser rejeitada. Porém, a direção com que ela é usada pode ser tanto prejudicial, quanto benéfica. Então, fica tranquilo, porque ninguém aqui acredita que ela é do diabo.

Ao contrário, a tecnologia é um mandato cultural de Deus para as pessoas usufruírem de sua inteligência e glorificá-lo com suas habilidades, convergindo a tecnologia para aquilo que é bom, digo, verdadeiro e belo.

Nisto, as ciências naturais, a cultura, a tecnologia e, portanto, a inteligência artificial são obras humanas que devem ser usadas para aprimorar as experiências humanas, preservada a relação de proteção ao meio ambiente.

É também muito interessante e real pensar que os seres humanos moldam as suas ferramentas, porém o contrário também é verdadeiro, as ferramentas moldam os seres humanos (2). 

A tecnologia é esta ferramenta capaz de moldar as ações das pessoas, tornar seus comportamentos diferentes. Ela é capaz de transformar o sentido das suas vidas. E, diferentemente do que alguns pensam, ela não é neutra. Por isso, é importante falar de tecnologia e fé, porque a tecnologia também pode ser usada como uma ferramenta de adoração.

Mesmo que ainda em incidência pequena, o perigo da inteligência artificial ser direcionada na vida desta maneira é o fato de esperar da tecnologia, e também da educação, recurso redentivo da vida na Terra, assim como esperar, de qualquer outra coisa, tamanha salvação.

A tecnologia não deve ser usada como um fim, e por isso também não deve ser usada para tratar as pessoas como máquinas, como seres sem dignidade. Mas, talvez, isto seja mais frequente hoje do que pode parecer.

A sociedade contemporânea é profundamente marcada pela relação de consumo. Isto é tão recorrente que esta visão se alastrou para várias áreas da vida. Isto se decorreu da transformação social das pessoas a partir da revolução industrial, inserindo a mulher no mercado do trabalho, e mudando a rotina das família.

E qual seria um exemplo nos tempos de hoje? Tratar os relacionamentos com base na relação de consumo, de custo-benefício (3). Fazer esperando algo em troca ou ter uma amizade apenas pelo status que ela pode dar. 

A esfera da fé também foi muito afetada a partir desta visão de consumo. É comum ver cristãos que buscam a Deus como meio de realização pessoal e de sucesso, não como o fim e o sentido de todas as coisas.

Identificando o individualismo na cultura

A secularização corroborou para que isso acontecesse, que a relação de consumo invadisse as diferentes áreas que envolvem a atuação e a forma de estar no mundo. Ela deu ênfase no indivíduo ao invés do coletivo, que consequentemente enfatizou o individualismo e a busca pela realização pessoal, por parâmetros próprios.

Outro fator importante é que a secularização excluiu a centralidade da fé no espaço público, reservando-a estritamente para o espaço privado. E não seria de se esperar o contrário, que resultou na busca incansável do indivíduo por sentido e propósito de vida.

O sentido e o propósito da vida passam a ser uma descoberta individual, não mais necessariamente tendo Deus como referência, mas podendo ser qualquer coisa que o indivíduo intitule para si fator subjetivo capaz de orientar toda a realidade.

Em outras palavras, o sentido da vida pode ser qualquer objeto ou idealização que o indivíduo nomeie para si “vida, e vida em abundância”.

Isto o faz lembrar de alguma coisa? O propósito de Jesus e sua missão tão humilde e altruísta de entregar a sua vida para redimir a humanidade era justamente esta, de trazer o sentido da realidade e mostrar que existe um Deus que não está longe, mas que se importa com a direção que a humanidade está tomando.

O evangelho é a boa notícia de uma nova vida, que não pode ser construída pelos estímulos externos da cultura individualista, nem da exposição exacerbada em busca de afirmação pessoal pelo coletivo. Mas é a boa notícia para quem se vê destroçado pelos ídolos da cultura.

O interessante nisso tudo é que a idolatria está presente em coisas lícitas (4). Nada disso é pecaminoso, mas em um primeiro olhar é bom. É válido querer crescer profissionalmente, mas é pecaminoso isso resumir a sua existência. É válido fazer viagens e conhecer lugares, mas é pecaminoso confundir sua autoimagem com aquilo que você faz. 

O fazer valer a sua vida se aventurando em esportes radicais para se manter vivo pode fazer a experiência perpetuar por alguns poucos dias, mas logo a realidade estará diante dos olhos novamente. A adrenalina anestesia as dores, porém a vida parece se resumir a um ciclo vicioso na tentativa de provocar artificialmente sensações de estar quase à beira da morte e em outras de se apaixonar de verdade.

Assim, os softwares, os algorítimos, as automações e a inteligência, por exemplo estão modernizando a vida comum e a vida virtual. Elas estão presentes nos sites de busca e nos aplicativos inteligentes.

A facilidade e a rapidez de acesso a informação e a inserção da tecnologia no mesmo tempo da formação do indivíduo, criou uma geração consumista e doutrinada na busca de sua própria felicidade. Essa geração aprendeu que ela pode ter tudo o que sempre quis.

Diferentemente, a vida tem uma dinâmica própria onde o controle parece não estar nas mãos do indivíduo. A precisão da tecnologia é benéfica, mas elas não deixam de moldar, também, as pessoas.

O ser humano está suscetível de ser doutrinado também pelas máquinas. Ser um agente capaz de atingir resultados como uma máquina, ou de subverter a relação humana e valorizar o que não é humano.

As sensações e sua revolução na vida afetiva

Falar de tecnologia e inteligência artificial é desafiador pela abrangência do tema e as implicações na vida comum, na sua relação com a fé e na visão filosófica intrinsecamente impregnada. Certamente, a tecnologia não é neutra. Ela não está desprovida do mau uso que o indivíduo pode fazer dela.

Quanto às sensações, a tecnologia também pode ser manipulada como fruto da revolução afetiva (5). Guilherme de Carvalho deixa claro o seguinte: “Tem pessoas que acreditam que a base da identidade e da felicidade é a afetividade. Então parece imoral para quem define o ser humano dessa forma, qualquer interdição à realização afetiva e qualquer crítica pública.”

As sensações são um prato cheio para o indivíduo estimular a sua vida a cada momento. O papel da inteligência artificial para as sensações seria a de moldar os relacionamentos não mais na importância da visibilidade que o outro tem, mas no monólogo sem consequências da exposição da vida transparente, porém editada.

A ênfase das sensações dá margem à defesa feroz e ao descortinador sentimento religioso sobre posicionamentos políticos (6), como um crítico sofisticado do século XXI, que ironicamente não sabe escolher dentre o turbilhão de informações que chegam na tela do seu computador ou celular, as que são úteis e verdadeiras.

Esta é a sociedade em que se vive e age muito através das telas, a partir da ética da estética e não da moralidade universal (6). 

As pessoas constroem a sua ética com base nas tendências do momento, na intenção de ser aceito e ser afirmado. O próprio homem, a sua história, a sua ideologia, as suas necessidades, as suas conquistas e os seus objetivos são incentivados pela relação idólatra que ele tem com as coisas. O seu ponto de referência é ele mesmo. O absoluto que era externo, agora é interno, e idolatradamente cultivado.

Se tratam de crenças que estão por trás do uso que se faz da tecnologia e da inteligência artificial. E que dão a sensação de felicidade e plenitude. As escolhas passaram a ser tomadas a partir das emoções. O estímulo dos impulsos consumistas e as publicidades voltadas para o benefício imediato.

A centralidade do evangelho na vida cotidiana

Depois de identificar vários hábitos e a consciência de como a tecnologia e a inteligência artificial têm buscado preencher a vida com estímulos artificiais e a sensação de autenticidade e de plenitude, é importante repensar se o evangelho tem sido de fato a centralidade da vida ou apenas um adorno.

Qual tem sido o propósito da inteligência artificial na vida humana e no dia a dia? Ela tem tornado o mundo mais previsível e confortável a ponto de afirmar como Fernando Pessoa, “navegar é preciso, viver não é preciso”.

Ao contrário desse entendimento onde viver não é preciso, e se preciso for dar a vida para isso acontecer, o resultado é desastroso. O sentimentalismo e a idolatria que ocuparam o sentido da vida podem ser traídos pela própria relação idólatra desequilibrada com o objeto amado.

E onde está o evangelho na vida deste indivíduo que professa a fé cristã? Se o coração pulsa mais pelos impulsos e estímulos artificiais do que por uma vida real orientada pela graça de Deus e pela adoção como filhos de Deus, talvez o evangelho deva estar ocupando o lugar da casa menos visitado.

A mente confessa Cristo, mas o coração está convertido para o mundo. Nestes caso, como o uso da tecnologia pode se tornar saudável? Substituindo ou reduzindo a busca pelo entretenimento para salvar os dias maus e os momentos de tédio por momentos de quietude e de refúgio em Deus.

Quando o barulho ensurdecedor do silêncio vier e os sentidos aguçarem pelo inquieto coração cujas insatisfações forem infinitas, retorne Àquele que é a fonte da vida, e vida em abundância.

Quando o controle e o conforto não estiverem presentes ou os elogios não aparecerem, não se entregue ao desespero. Mas busque o lugar seguro de uma vida direcionada e moldada constantemente pela ação do Espírito Santo.

A cultura em que seus agentes não podem suportar a realidade é a mesma que “não pode curar a doença, mas apenas fazê-la esquecer que está doente”. (7)

As oportunidades de ser parecido com Cristo em uma cultura individualista, será também em ser moldado no ego, onde é comum a vida e a cultura apontar para o próprio umbigo. 

Ao invés de se tornar a imagem de si mesmo, pelo Espírito Santo a vida comum experimenta o poder de Deus, a imagem do Filho, a perspectiva de Deus e a satisfação e a realização como ponto de referência a cruz, a obra divina e humana na cruz.

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  1. (1) Liturgia do ordinário – Tish H. Warren
  2. (2) Artigo sobre Entrevista com Derek C. Schuurman sobre a Relação entre Fé Cristã e Tecnologia
  3. (3) Rompendo a Bolha: Cosmovisão, ciência e cultura – Pedro Dulci
  4. (4) Deuses Falsos – Timothy Keller
  5. (5) Revolução Afetiva – Guilherme de Carvalho
  6. (6) Teologia na era da internet – Pedro Dulci
  7. (7) Engolidos pela cultura pop, arte, mídia e consumo: uma abordagem cristã – Steve Turner