A questão religiosa foi consequência

A chamada Questão religiosa foi um episódio que não esteve diretamente relacionado ao fim do Império, mas que desgastou bastante a relação entreProclamação da República a Coroa e a Igreja católica.

São amplamente conhecidas as relações entre a o catolicismo e a política brasileira. Desde o processo colonizador até a , Igreja e Estado - primeiro o português, depois o brasileiro - sempre estiveram intimamente ligados. Após 1889, embora não existisse mais uma ligação formal, a relação entre os dois não desapareceu.

A Constituição de 1824 estabelecia o catolicismo como religião oficial do Império. Portanto, ao contrário de hoje, em que temos um Estado laico, até 1889 existia uma relação formal entre a Igreja e a Coroa, que atendia aos interesses de ambos. Ao imperador, por exemplo, era facultado o direito ao padroado (prerrogativa de preencher os cargos eclesiásticos mais importantes) e ao beneplácito (aprovação das ordens e bulas papais para que fossem cumpridas, ou não, em território nacional). Os próprios sacerdotes eram tratados como funcionários públicos, recebendo salários da Coroa.

Bispos aplicam o ultramontanismo

A bula papal "Syllabus" (1864) e o Concílio Vaticano 1° (1869-1870) consagraram a doutrina do ultramantonismo, defendida pelo papa Pio 9º. Em linhas gerais, essa doutrina postulava a infalibilidade do papa e combatia as ideias e instituições que defendiam a secularização e o anticlericalismo. Esse era o caso, por exemplo, da Maçonaria. Contudo, no caso brasileiro, havia inúmeros clérigos maçons.

O bispo do Rio de Janeiro, dom Pedro Maria de Lacerda, era um dos adeptos do ultramontanismo. Por isso mesmo, em abril de 1872, suspendeu o padre Almeida Martins, que, no mês anterior, numa festa em comemoração à Lei do Ventre Livre, havia proferido um discurso em homenagem ao visconde de Rio Branco, presidente do Conselho de Ministros e - o que era o problema - grão-mestre da Maçonaria.

Em março, o bispo do Pará, Antônio de Macedo Costa, já tinha atacado violentamente os maçons, ameaçando os religiosos ligados à Maçonaria de não poderem continuar participando das atividades religiosas e de perderem o direito à sepultura eclesiástica e à absolvição sacramental. Contudo, após a punição do padre Almeida Martins, clérigos maçons divulgaram um manifesto em que reafirmavam a compatibilidade entre a atividade religiosa e a Maçonaria.

Em dezembro de 1872, foi o bispo de Olinda, Vital Maria, quem procurou aplicar o ultramontanismo. Após uma campanha mal-sucedida para incentivar católicos a abandonarem a Maçonaria, o bispo determinou que as irmandades expulsassem seus membros maçons. Porém, não sendo atendido, passou a ameaçar de excomunhão os que tivessem ligações com a Maçonaria.

Imperador e papa celebram acordo

Nos dois casos, os perseguidos recorreram ao governo provincial, que encaminhou o recurso à Corte. Tanto Antônio de Macedo quanto Vital Maria foram declarados incompetentes para punir as irmandades, papel que caberia ao imperador, dom Pedro 2°. Enquanto o bispo de Olinda continuou sustentando sua decisão, o bispo do Pará assumiu uma postura mais contundente. Macedo não reconheceu a autoridade do Império para censurá-lo.

Para tentar dirimir os atritos com a Igreja, dom Pedro enviou ao Vaticano a chamada Missão Penedo, em agosto de 1873. Entretanto, os acontecimentos seguintes inviabilizaram a missão diplomática. No final daquele ano, o Conselho de Ministros, diante da insubordinação dos bispos, decidiu apresentar denúncia formal contra os dois. No início de 1874, Antônio de Macedo e Vital Maria foram condenados a quatro anos de prisão.

A solução para o impasse só ocorreu em 1875, quando o papa Pio 9° e o imperador Pedro 2° finalmente chegaram a um consenso. Este concedeu anistia aos bispos presos. O papa, por sua vez, suspendeu as punições contra as irmandades do Pará e de Olinda. Igreja e Estado se mantinham, assim, juntos novamente, numa relação que não resistiria mais do que alguns anos.

(Advogados Zacarias de Góes e Vasconcelos, Cândido Mendes de Almeida e Antônio Ferreira Viana)A Questão Religiosa foi um reflexo no Brasil da confrontação que se verificava na Europa entre a Maçonaria e a Igreja Católica Romana. Além disso, envolveu a autonomia da Igreja diante do poder civil, direito que foi tenazmente defendido por D. Romualdo de Seixas, da Bahia, e D. Antônio Viçoso, de Mariana, e, posteriormente, por D. Macedo Costa, do Pará, e outros bispos.O primeiro incidente ocorreu quando o bispo do Rio de Janeiro, D. Pedro Maria de Lacerda, lembrou ao padre Almeida Martins os cânones católicos contra a Maçonaria e suspendeu o uso de ordens sacras por ter o sacerdote proferido um discurso em homenagem ao Visconde de Rio Branco, em regozijo pela Lei do Ventre Livre, em março de 1872.Posteriormente, D. Vital Maria Gonçalves de Oliveira, bispo de Olinda, e D. Antônio de Macedo Costa, bispo do Pará, determinaram que as Ordens Terceiras e Irmandades excluíssem os seus membros que também pertencessem à Maçonaria.Acostumadas à autonomia, elas desobedeceram, francamente, às determinações, e D. Vital não teve dúvidas: lançou o interdito canônico sobre as capelas ligadas àquelas entidades, as quais, inconformadas, apelaram ao Imperador, alegando abuso de poder por parte do bispo. O Imperador acolheu o recurso das irmandades.D. Vital e, pouco depois, D. Macedo receberam aviso oficial do ministro do Império, João Alfredo, como infratores das leis, pois o apelo das irmandades fundamentava-se no Decreto nº 1.911, de 28 de março de 1857.Deveriam os bispos declarar sem efeito os seus atos, pois a constituição das Ordens Terceiras e Irmandades do Brasil era de exclusiva competência do poder civil e a atitude dos bispos constituía uma usurpação da jurisdição do poder temporal.Os bispos reagiram. D. Vital declarou que o beneplácito imperial não passava de uma aberração, pois o recurso contra as decisões dos bispos configurava-se absurdo e herético. D. Macedo Costa foi mais rigoroso: reconhecer no poder civil autoridade para dirigir as funções religiosas equivalia a uma apostasia.Logo o presidente do Supremo Tribunal de Justiça expediu mandado de prisão contra os dois bispos, dando-os como incursos no artigo 96 do Código Criminal.D. Vital foi preso em janeiro e D. Macedo em abril de 1874.O julgamento foi rápido e os bispos se recusaram a defender-se, pois não reconheciam a competência do Supremo Tribunal de Justiça para julgar matéria de alçada exclusiva da Igreja.Era presidente do Tribunal em 1874 o conselheiro Joaquim Marcelino de Brito e como representante do governo funcionou o procurador da Coroa, Fazenda e Soberania Nacional, Francisco Baltazar da Silveira.Assumiram a defesa de D. Vital, como advogados, políticos católicos de grande importância, Zacarias de Goés e Vasconcelos e Cândido Mendes de Almeida. Os advogados de defesa apresentaram exemplares peças oratórias, especialmente Cândido Mendes de Almeida, que assim perorou:“Se, pondo os olhos em Deus, na lei, na ciência, absolverdes o paciente, os vossos nomes serão inscritos no livro da imortalidade e vossa memória atravessará séculos, bendita não só pelos homens de nossa crença, mas também por todos os homens de coração; se, porém, infelizmente, seguirdes outro caminho, tereis os aplausos de momento, dados por aqueles que querem sacrificar este mártir – apontando para D. Vital -, mas não podereis contar senão com a severidade da história neste mundo e implorar a infinita Misericórdia Divina no outro”.D. Vital foi condenado à pena de quatro anos de prisão com trabalhos, grau médio do artigo 96 do Código Criminal, sendo a mesma comutada em prisão simples por D. Pedro II. O condenado foi recolhido à fortaleza de São João, onde permaneceu um ano e sete meses, quando, em 7 de setembro de 1875, gozou o benefício da anistia, decretada por Duque de Caxias, presidente do Ministério.D. Antônio de Macedo Costa foi julgado em 24 de junho de 1874, sendo seu advogado o conselheiro do Império, Antônio Ferreira Viana. Bela foi a peroração de Ferreira Viana em favor do bispo do Grão-Pará:“Em vós, Senhor, deve fulgurar sobre as gemas de Vossa Coroa o poder com que sabeis dominar as paixões, que, mais uma vez, exigem o sacrifício do inocente.Quantas bênçãos não cairiam sobre vós se, iluminados pela justiça, permitísseis que celebrássemos com transportes de alegria e júbilo a festa santa da libertação do heróico bispo do Grão-Pará.Restituí, Senhor, a cabeça ao corpo, o pastor às ovelhas, o mestre aos discípulos, aos órfãos pobres, que choram sua ausência e seu cativeiro, o benfeitor infatigável, o grande sacerdote aos sacerdotes e a lâmpada ao santuário!”D. Macedo Costa também foi condenado a quatro anos, parte dos quais cumpriu na fortaleza da Ilha das Cobras. Também foi anistiado como D. Vital.O vocativo “Senhor” não era dirigido nem ao presidente nem ao relator do caso. É que o alvará de 1768 mandava atribuir aos Tribunais Superiores o tratamento referido, juntamente com o de “Majestade”, os quais foram abolidos pelo Decreto nº 25, de 1890, no despertar do República, que manteve, contudo, o tratamento de “Egrégio Tribunal”.D. Vital, por si mesmo, não se defendeu. O prelado declarou apenas:“O Senhor Jesus autem tacebat!”Nos bastidores da diplomacia, a condenação refletiu intensamente. O Barão de Penedo foi enviado, em missão especial, a Roma, para pedir ao Papa Pio IX que repreendesse ambos os bispos.Depois de 18 meses de prisão, o Imperador decretou a anistia em setembro de 1875.D. Macedo Costa voltou à sua diocese e ainda pôde assistir à queda de D. Pedro II, vindo a falecer em 1890.D. Vital esteve de passagem em sua diocese, mas não reassumiu as suas funções, pois, doente, renunciou ao episcopado e voltou à Europa, em busca de tratamento de saúde, onde faleceu em 1878.Apesar de seu aparente fracasso, D. Vital passou a ser um símbolo para o episcopado e para os católicos brasileiros. Eram ambos ilustres prelados.D. Vital, pernambucano de Itambé, fora educado na Europa e lecionara Teologia e Escritura Sagrada no Seminário de São Paulo. As suas orações sacras eram aplaudidíssimas na capital paulista, onde viveu três anos, para ir ocupar o cargo de bispo de Olinda.D. Macedo Costa, natural do Pará, possuía sólida cultura e era orador de arrebatar as massas, tendo deixado várias obras publicadas.Escreveu Raimundo de Menezes que o governo nada tinha que se imiscuir em assuntos de alçada interna da Igreja. “Daí nasceu a grande tempestade. Acabaram, por fim, martirizando dois inocentes, cujos nomes foram lançados, pela sua coragem invulgar e pelo estoicismo das suas atitudes heróicas.”