A afronta na literatura popular

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A afronta na literatura popular

A primeira telenovela de Dias Gomes foi “A Ponte dos Suspiros” (1969), na Rede Globo. O dramaturgo, militante comunista, usou o pseudônimo Stela Calderon para assinar a obra. Suas novelas circulavam pelo bizarro, pelo folclórico e pelo político, e inevitavelmente caíam no gosto popular. O bem amado, novela de 1973, foi alvo da censura algumas vezes; por exemplo, a personagem de Paulo Gracinado, Odorico Paraguassu, não poderia ser chamado de “coronel”, tratamento dispensado aos oligarcas no interior do Brasil. Zeca Diabo, personagem de Lima Duarte, tampouco poderia ser chamado de “capitão.” Palavras como ódio e vingança também estavam proibidas. Mas o maior ataque da censura a Dias Gomes estava por vir: em 1976, ás vésperas de estrear, a novela Roque Santeiro foi proibida de ir ao ar. A desculpa dada pelo governo federal era que a novela era uma afronta a moral e aos bons costumes, uma ofensa à Igreja. Na verdade, descobrira-se que a novela era na verdade uma adaptação do livro O berço do heróis, que os militares consideravam denegrir sua imagem.

Em 1985, a Rede Globo de televisão voltou a investir alto em uma nova tentativa de produzir a novela, montando uma cidade cenográfica no Rio de Janeiro. Com Regina Duarte, José Wilker e Lima Duarte nos papéis principais, a novela alcançou estrondoso sucesso e foi um marco na televisão brasileira.

A telenovela diária começou a ser produzida no início dos anos 1960 e logo caiu no gosto popular. A censura passou a mirar neste gênero especialmente nos anos 1970, quando as tramas deixaram de ser dramalhões surreais ou adaptações de clássicos e passaram a ser mais realistas e com tramas contemporâneas. Passatempo favorito das famílias em áreas urbanas, as telenovelas foram censuradas especialmente por questões morais – relacionamentos fora do casamento, violência e agressões, alcoolismo, hippies, filhos demasiadamente independentes, divórcio, qualquer coisa que pudesse afrontar a família brasileira era vetada. Referências a corrupção, injustiça social também eram vetadas assim como – obviamente – qualquer crítica direta ou indireta a qualquer ação do governo ou dos militares. Os censores chegaram ao cúmulo de alterar enredos, tornando o final das novelas uma verdadeira lição de moral.

A censura continuaria ativa ao longo dos anos 1980, embora muito menos ativa. Ela seria extinta apenas com a Constituição de 1988.

DE SALES SILVA, Thiago. A TV E A “CORROSÃO DOS VALORES”: A CENSURA DAS TELENOVELAS NA DÉCADA DE 1970. EMBORNAL, v. 7, n. 13, p. 110-126, 2017.

FADUL, Anamaria. Telenovela e família no Brasil. Comunicação & Sociedade, v. 22, n. 34, p. 11-39, 2000.

HAMBURGER, Esther. Telenovelas e interpretações do Brasil. Lua nova, n. 82, p. 61-86, 2011.

HAURÉLIO, Marco. Breve história da literatura de cordel. Claridade, 2018.

Antes de serem palavras escritas, eram versos musicados, em geral em redondilha maior. Do último quarto do século XIX às primeiras décadas do século XX, popularizou-se sob a forma impressa. A literatura de cordel, de herança europeia que criou raízes em Pernambuco, incorpora as vozes dos repentistas e frequentemente as ilustra com xilogravura. Popular em outros estados nordestinos, essas publicações tratam praticamente de qualquer tema, de novas leis até fofocas de celebridades, passando por incidentes cotidianos e eventos climáticos. Em setembro de 2018, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional reconheceu a literatura de cordel como patrimônio cultural imaterial do Brasil.

O cordel que aqui mostramos conta a história de Roque Santeiro e de sua viúva, que era sem nunca ter sido. Você conhece essa história? Dê sua opinião, conte o que acha. Em breve, todos os detalhes da história na seção Conte uma  história do site Que República é essa?

1Um dos ramos mais pobres da literatura culta portuguesa é, sem dúvida, o da novelística de fundo tradicional. Enquanto a corrente popular tem transmitido entre nós até ao presente a maior parte dos contos tradicionais conhecidos nos outros países da Europa, como claramente nos provam cerca de duzentos espécimes que temos coligido num pequeno círculo de investigação, a corrente literária tem sabido muito pouco dessa rica mina. Esse mesmo pouco que possuímos de novelas de fundo tradicional é até muito mal conhecido e ainda menos estudado. Em consequência dessa pobreza toma um lugar importante pelos seus Contos e Histórias de Proveito e Exemplo, Gonçalo Fernandes Trancoso, escritor da segunda metade do século xvi, acerca do qual se conhecem muito poucas particularidades pessoais. As duas primeiras partes desses contos foram impressos em 1585, 4.°, Lisboa, por Marcos Borges e reproduzidas já quatro anos depois por João Álvares (Lisboa, 8.°). A edição de 1585 era até alguns anos a mais antiga conhecida dos bibliógrafos; mas parece que apareceu no mercado num dos últimos anos uma edição de 1575. A terceira parte, cortada, saiu em 1596 em casa de Simão Lopes (ibidem, 8.°), por diligência de António Fernandes, filho do autor já então falecido. A boa aceitação que essa obra teve é testemunhada pelas suas edições sucessivas nos dois séculos seguintes, compreendendo as três partes; temos notícias das seguintes: Lisboa, 1608; Ibidem, 1633; Ibidem, 1646; Coimbra, 1660; Lisboa, 1671; Ibidem, 1681; Ibidem, 1710; Ibidem, 1722; Ibidem, 1734; Ibidem, 1764. Vimos apenas as edições de 1710, 1734 e 1764. O título da primeira e da última destas é: Histórias Proveitosas, Que Contêm Contos de Proveito e Exemplo, para Boa Educação da Vida Humana. As de 1710 e 1736 abrem com Breve Recopilação da Doutrina dos Mistérios mais Importantes da Nossa Santa Fé, etc., pelo padre António Rebelo; em todas as que vimos se acha no fim um tratado de Polícia, e Urbanidade Cristã, que não é sem interesse para a história dos costumes, e uma Oração em Louvor do Sudário. Estas particularidades indicam já que temos no livro de Trancoso uma obra feita com intuitos moralizadores, senão edificativos, e inteiramente limpa das frases, episódios livres e do maravilhoso das novelas francesas e italianas com que a Inquisição não simpatizava. Permitia-se entre nós a novela sob a condição de se subordinar ao catecismo e ainda assim temia-se tanto a sua influência que a rodeavam do aparato ascético de que a edição de Trancoso de 1710 nos dá um completo exemplo. Harmonizados assim com as exigências do meio social, em que a palavra de ordem era dada pela igreja, compreende-se a popularidade que os Contos de Proveito e Exemplo ganharam rapidamente. O povo que não sabia ler, apesar da pressão eclesiástica, tinha com que satisfazer as necessidades da sua imaginação nos inexauríveis tesouros da tradição oral; mas os cultos e os semicultos, separados do povo e a quem esses tesouros estavam naturalmente vedados pela educação, deviam receber com fervor um livro que podia, senão satisfazer, pelo menos, contentar aquelas necessidades. Quando, porém, a nova época, inaugurada pelo marquês de Pombal, tornou possível em Portugal a circulação das novelas de Voltaire, Genlis, Diderot, Madame Gomes, Arnaud, etc., os contos de Trancoso perderam imediatamente a sua popularidade e não foram mais reproduzidos. Cremos pois que a edição de 1764 é a última.

2Os Contos de Proveito e Exemplo vão-se tornando cada vez mais difíceis de encontrar à venda, o que deve ser atribuído à destruição dos exemplares, o livro sendo apenas tido na conta de curiosidade bibliográfica ou não indigno de ser lido, porque, como se exprimiu um académico, «é escrito na linguagem do seu século (!)». Em verdade, Trancoso é um assaz miserável narrador e os seus fins moralizadores, obrigando-o a cada passo a comentários morais, fazem diminuir o interesse dos seus contos; mas ele bebeu na corrente tradicional, popular ou literária, e isto basta para que o seu livro chame a atenção dos que se dedicam aos estudos de literatura comparada, e tanto mais quanto no género há tamanha pobreza entre nós.

3Trancoso tem permanecido até hoje desconhecido às autoridades mais competentes naqueles estudos, como Benfey, Liebrecht, Köhler, OEsterley, d’Ancona, Gaston Paris. Uma curta notícia ministrada à Revista de Literatura Popular de F. Sabatini pelo Sr. Teófilo Braga é muito insuficiente.

4Este nosso primeiro estudo tem por objecto um dos contos mais interessantes do nosso novelista, o n.° 15 da primeira parte. Ei-lo em resumo:

5«O mais velho de dois irmãos casa sem licença do pai, que por isso lhe cria ódio. Morto o pai, o irmão mais novo sonega o melhor da fortuna e ao mais velho quase nada cabe nas partilhas; este, vendo-se na miséria, cercado de filhos, foi ter com o outro a pedir-lhe a parte feita de umas casas principiadas pelo pai e o irmão e o rico concedeu-lha por doação legal, depois do que casou com uma mulher ambiciosa que exigiu que ele tirasse as casas ao irmão mais velho. Não foi, porém, possível anular a doação. A mulher teima; faz agravar da sentença e seguir até maior alçada e assim foi à Suplicação, que então era em Évora. Partiram os dois irmãos, o rico a cavalo; o pobre a pé. Numa estalagem o primeiro foi lautamente tratado e o segundo para matar a fome teve que assar ao borralho uma cebola, que ceou com pão e água. O estalajadeiro estava muito contente, porque sendo muito rico não tinha filhas e agora a mulher estava grávida e perto de parto. Comeu a mulher à mesa do rico, mas o cheiro da cebola produziu-lhe grande apetite, e só com vergonha do hóspede rico é que não se ergueu da mesa; o pobre foi deitar-se e a criança que queria do que cheirou morreu no ventre da mãe. Sabida pelo marido a causa da morte do filho, queria matar o pobre; mas o irmão disse-lhe que ia à corte em demanda e que, se ele queria, fosse também lá acusá-lo. Foram. No caminho acharam uma azêmola metida num atoleiro e o pobre ajudou o dono dela a tirá-la de lá; mas como puxasse pelo rabo do animal, arrancou-lhe grande porção de cabelos, sem os quais o animal ficou muito feio. O dono da azêmola vai também à corte para acusar o pobre homem. Este, chegado a Évora, vendo-se com três demandas às costas resolve, em desespero, deitar-se da muralha abaixo, e vai cair em cima de um velho entrevado, que estava sentado ao sol e que tinha a morte próxima, matando-o sem ele próprio morrer. Os filhos do velho levaram o involuntário homicida preso ante o regedor. Há então grande briga sobre qual pleito devia primeiro ser julgado; mas o regedor segue a ordem cronológica e sentencia: ‘Que o irmão mais novo dê duzentos cruzados ao mais velho, que se dizia ser o que havia sonegado no inventário, e as casas; que o vendeiro pela afronta lhe pagasse cinquenta cruzados; a azêmola que ficasse em casa do pobre até que lhe crescesse o rabo; que o acusado fosse sentado na cadeira onde estava o velho e o acusador se deitasse sobre ele do muro abaixo ou lhe pagasse cinquenta cruzados.b

6Num antigo periódico literário português, o Ramalhete, achámos uma versão do mesmo conto, traduzida evidentemente do francês com o título: O Cádi de Emessa, Conto Oriental, por Felix Mornand, secretário da comissão enviada a África. A redacção de Mornand baseia-se evidentemente sobre uma versão árabe de África, quer oral quer literária. Eis um resumo dela:

7«Um negociante muçulmano recebe dinheiro emprestado de um judeu com a condição de deixar que este lhe tire uma libra de carne não pagando no dia convencionado. O negociante muçulmano é feliz na especulação que intenta com o dinheiro do judeu; mas a mulher daquele gasta o dinheiro que o marido lhe envia para pagar ao credor, na ignorância da condição do contrato. O muçulmano voltando é demais roubado por salteadores e o judeu exige o comprimento do contrato. Vão os dois ante o cádi de Emessa para ele resolver a pendência. No caminho encontram uma mula a fugir e o dono gritando que a agarrassem ou que a fizessem voltar; o muçulmano atira com uma pedra ao animal a ver se o fazia voltar, e vasa-lhe um olho. O dono acompanha-o ante o cádi para obter reparação. Chegam no fim da tarde a uma vila e sobem ao terraço de uma casa para ali passarem a noite; um motim acorda pouco depois o muçulmano, que salta do terraço para ir ver o que é, mas cai sobre um homem que dormia em baixo e mata-o. Os filhos desse homem queriam matar o negociante; mas o judeu reclama-o e vão todos seguindo o caminho de Emessa. No dia seguinte encontram um burro num atoleiro, sem poder sair dele. O dono pede que o auxiliem, o negociante vai a puxar pelo rabo ao animal e arranca-lho. O dono reclama o valor do burro e lá vai também na companhia para Emessa. Ao entrarem na cidade viram um homem de figura venerável, montado num burro, coberto de um grande vestido preto, mas completamente bêbado e vomitando pelo caminho. O muçulmano pergunta quem é aquele sujeito e respondem-lhe que é o censor, magistrado encarregado de vigiar os costumes públicos. Mais adiante encontram um homem vivo e gritando, num esquife, o qual vão enterrar.

8Chegados à presença do cádi, o judeu faz a sua acusação e o magistrado, depois de mandar vir um cutelo bem afiado, diz-lhe que corte ao negociante uma libra de carne; mas que se lhe tirar mais que a libra o mandará decapitar. O judeu renuncia de sua pretensão e entrega a obrigação ao muçulmano; mas é além disso obrigado pelo cádi a dar-lhe uma indemnização de 200 dinheiros. Ao dono da mula, que a avalia em 1000 dinheiros, diz o cádi que parta o animal ao meio, dando a metade lesada ao negociante e recebendo deste 500 dinheiros. O homem prefere ficar com a mula, sendo obrigado a pagar ao réu 100 dinheiros de indemnização. Aos filhos do homem morto diz que se vão deitar do telhado da casa sobre o negociante; eles não querem aceitar a sentença e são obrigados a pagar ao réu a indemnização de 200 dinheiros. Quando chega a vez do dono do animal a que o réu arrancara o rabo, o cádi manda buscar o seu próprio burro e diz ao dono queixoso que lhe arranque o rabo; mas o burro do cádi escoceia o acusador, que acaba por confessar que o rabo arrancado era postiço. O cádi condena-o a pagar 100 dinheiros. Depois o negociante interroga o magistrado em relação ao que viu ao entrar na cidade. O cádi diz que os vendedores de bebidas são uns grandes ladrões, de modo que ainda que o censor se limite a provar os licores não admira que à tarde esteja bêbado. O homem ia a enterrar, porque duas testemunhas tinham afirmado ante o cádi que ele tinha morrido, tendo a sua mulher contraído já novo matrimónio.»

9Juan de Timoneda, contemporâneo de Trancoso, deu no seu Patranuelo (primeira edição em 1576) a seguinte versão, que reproduzimos da Biblioteca Rivadeneyra, do volume Novellistas castellaños anteriores á Cervantes:

10«Un tira-tierra, habiéndose levantado muy de mañana para ejercitar su pobre oficio, yendo cargados sus asnos, vido en medio de la calle un talegon, y dandole con el pié, vido que eran dineros, y que á gran priesa venia uns de á caballo en busca dellos. Pera mejor cogerlos á su salvo, echóle la tierra encima. Como llegase el mercader, y le dijese: «buen hombre, habeisme visto un talegon que se me ha caido con cierta cantidad de moneda?», le respondió: dejadme, cuerpo de tal, con vuestra talega ó talegon, que harto tengo que ver en volver á carga esta tierra que me ha echado el asno. Ido el mercader, cargó el astucioso hombre su tierra con el talegony, llevándole á casa, él y su mujer de muy regocijados se pusieron á contar los dineros; y de ver que eran cruzados de oro de Portugal regostáronse con ellos de tal manera, que habiendo sentimento, se les cayó uno detrás de la caja que estaban contando, y vueltos al talegon como se estaban alzólos la mujer.

11El mercader, por parte del alcade, mandó publicar que cualquiera que se hubiese hallado un talegon con cien cruzados de oro, que los manifestase, y que le darion diez por buen hallazgo. Venido á noticia del tira-tierra, dijolo a su mujer; ella no queriéndolos manifestar en ninguna manera; el con buenas palabras la indució que de mas consciencia y provecho les seria tomar diez ducados de hallazgo que los cien ducados, no siendo suyos, y así se los dió. El buen hombre, venido delante el alcaide, manifestó los dineros los cuales, vista la presente, libró en poder del mercader, habiendo dado sus testigos y razon satisfactoria, que eran suyos. Y como el mercader los reconociese y hallase uno menos, dijo: ‘mire vuestra señoria que aqui no hay sino noventa y nueve cruzados, y los mios son ciento, como quiere que se determine este megocio?’ Pensando el alcalde que no fuese maña del mercader, por no pagar el hallazgo promettido, dijo: ‘sus, ya lo entiendo, que no deben de ser esos los vuestros dineros, volvédselos al buen hombre.’ Vueltos, mas por fuerza que de grado, fuése el tira-tierra muy alegre con los dineros á sua casa; antes que allá llegase encontró con un aguador, grande amigo suyo, que se le habia caido el asno en un lodo, y rogandole que se lo ayudase á levantar, tomóle de la cola, y tirando d’ella que dósele en las manas, por do el aguador empezó á dar voces: ‘don traidor, pagadme mi asno, que me habeis desrabado.’ El tira-tierra, medio turbado de lo que le habia acontecido, dando á huir encontró con una mujer preñada, de tal manera, que cayó, y fué asido del porqueron; y la mujer, del encuentro, malparió, vista la presente.

12Asi que, asido el tira-tierra, y detrás del el amo del asno, y la mujer preñada y su marido, fueron delante del alcaide. Oida la queja tan graciosa del amo del asno, que se lo pasgase, porque se lo habia desrabado, y la necia demanda del marido, porque se afligia en estremo, diciendo: que de qué manera podia sentenciar su señoria, que su mujer estuviese preñada como se estaba. Oidas las partes, dió por sentencia que en cuanto á la demanda del asno, que se lo llevase el tira-tierra á su casa y que se serviese del hasta en tanto que le saliese la cola, y porque el marido reprochó de qué suerte sentenciaria que su mujer estuviese preñada como antes estaba, sentenció el juez que se la llevase el tira-tierra á su casa, y que trabajase de volvérsela preñada, con tal que su mujer fuese contenta. La cual sentencia fué muy aprobada y reida del pueblo, y obedecida, a aunque le pesase al insipiente marido. Viniendo el tira-tierra á sua casa, alegre y regocijado por verse señor de dineros, y de asno, y de mujer nueva, salió la mujer á recibirle, diciendo: ‘que es asquesto, marido?’, respondió: ‘ventura, mujer, toma ese telejon que los cruzados son nuestros.’ Pidióle mas: ‘y el asno?’ ‘Tambien es ventura, porque me hade servir hasta que le salga la cola.’ Replicóle: ‘e la mujer?’ Respondióle: ‘Tambien es ventura, pues la tengo de volver prenada á su marido.’ – ‘Como de volver preñada?’ dijo la mujer, ‘a eso llamais ventura?’ no es sino desventura: ‘dos mandadoras en una casa?’ Respondió el marido: ‘catad, mujer, que el juez lo ha mandado.’ – ‘Aunque lo mande y remande, dijo la mujer, yo soy la que mando en mi casa, y por el siglo de mi madre, tal no entre de las puertas adentro.’

13Despidiéndola, como el marido della la hubiese seguido, presumiendo lo que se podia seguir, cobró su mujer muy satisfecho y contento.

14A cabo de dias tornó el mercader á suplicar al alcalde, dando otros testigos de fe y de creencia, como eran suyos los cruzados; por lo qual mandó llamar al tira-tierra, y que trajese el talejon con los cruzados. Traidos, mandó el alcaide que se los diese. Dijo el tira-tierra, al punto que se los dió, pensando que tampoco los recibiria: ‘mire, señor; que no hay sino ochenta, porque los otros se han gastado en alhajas de mi casa.’ Respondió el mercader: ‘ochenta ó setenta, dad acá, que no quiero contallos, que mas vale tuerto que ciego, que yo los recibo por ciento. Anda con Dios.’ Contentas las partes, cada qual se fué a su casa.

15Oyendo el aguador que todos habian cobrado sus haciendas, asi el mercader sus dineros, como el otro su mujer, parcció delante del alcalde, suplicando que le mandase restituir el asno, que él era contento de recibirle desrabado, asi como estaba proveido; cobró su asno, y el tira-tierra se quedó con veinte ducados y libre de los querelantes.»

16As versões de Trancoso, Timoneda e Mornand não foram mencionadas por nenhum dos eruditos que se ocuparam do nosso conto.

17O célebre orientalista Teodor Benfey, na Introdução à sua tradução alemã do Pantschatantra2, § 166, deu a conhecer as seguintes versões:

18Russa, publicado em folha volante, como muitos outros contos russos e frequentes vezes reproduzida;

19Tibetana, que forma parte do Dsanglun ou o Sábio e o Louco, colecção tibetana de lendas búdicas, de que há uma tradução mongólica com o título de Uligerun Dalai, «O Mar dos Exemplos»;

20Indiana (?) moderna, nas Memórias de Lutfullah, indiano maometano contemporâneo;

21Alemã no Meistergesang da Justiça do Imperador Carlos, impresso em Bamberg em 1493.

22Reinhold Köhler, no seu artigo sobre as Novelle di Giovanni Sercambi, publicadas por Alexandro d’Ancona (Bolonha, 1871, 8.°), cita (Jahrbuch f. romanische und englische Literatur, xii, 349 s.) as seguintes versões mais:

23Italiana, em Sercambi (De justo judicio) ; outra italiana no poema popular Novella di Busotto, do qual só conhecemos o sumário dado por Passano (Novellieri italiani in verso, p. 81), que nos foi comunicado pelo nosso amigo E. Monaci;

24Inglesa, em Bishop Percy’s Folio Manuscript. Balads and Romances. Edited by J. W. Hales and Fr. J. Furnivall (London, 1868), iii, 127 sg.

25Nessas versões reaparecem os episódios que se acham nas versões de Trancoso, Mornand e Timoneda; mas nem todas as versões oferecem os mesmos episódios, o que se dá também nas que os nossos leitores já conhecem, e além disso na versão tibetana há um episódio que corresponde pelo lugar ao do encontro do homem embriagado e do homem que enterram vivo na versão Mornand, mas inteiramente diferente, e na versão Percy (exprimimo-nos assim por brevidade), em vez do episódio do animal que perde a cauda ou um olho e da criança que aborta, temos uma dama com um olho vasado. Os episódios de mais não se sucedem sempre na mesma ordem, absoluta ou relativa. No Dsanglun há de mais um episódio (F) a que nada corresponde pela ideia ou pelo lugar nas outras versões.

26A tabela acima permite num lance de olhos comparar as nove versões (o que conhecemos da Novella de Busotto é insuficiente para a fazermos entrar nas nossas comparações) enquanto aos episódios que as compõem e à sua sucessão. Como se vê, as versões dividem-se em três grupos ou representam três tipos: no 1.° tipo não há nem o episódio do penhor de carne, nem o da bolsa; no 2.° tipo há o episódio do penhor de carne, mas não aparece o da bolsa; no 3.° tipo falta o episódio do penhor da carne mas oferece-se-nos o da bolsa. Nas versões tibetana (Dsanglun) e Mornand o episódio do animal lesado acha-se reproduzido sob duas formas diversas. Comparemos agora as formas dos episódios comuns a duas ou mais versões.

Episódio A

27A versão russa e a tibetana são as únicas em que o episódio A (animal lesado) é o ponto de partida. Na versão russa um irmão rico empresta ao irmão pobre um cavalo sem arreios; o pobre é obrigado a prender o trenó, com que vai à lenha, ao «rabo do cavalo»; ao subir o limiar da porta, na volta, arranca-se o rabo ao cavalo e o dono chama o irmão a juízo. A versão tibetana começa de um modo semelhante: um proprietário (aqui não irmão) empresta a um pobre brâmane um boi; quando o pobre lhe vai entregar o animal, está o proprietário comendo; o pobre leva para o curral o animal, mas este foge sem poder ser apanhado. O proprietário leva o pobre a juízo ante o rei; no caminho o brâmane é chamado por um homem para o ajudar a agarrar um «jumento» fugido, a que ele atira uma pedra, quebrando-lhe uma perna (Dsanglun 2). É evidente uma de duas coisas: ou na versão russa 1 se fundiram os episódios da tibetana 1 e 2 ou estes nasceram por cissiparidade e diferenciação de um só episódio, como se acha na versão russa. Em Trancoso 3, Mornand 4, Sercambi 2 e Patrañuelo 2, o réu querendo-a ajudar a tirar uma cavalgadura (azêmola, cavalo ou burro) arranca-lhe o rabo (em Trancoso só pêlos). Em Lutfullah 3 o réu fugindo vai de encontro a um cavalo a que tira «um olho»; ora em Mornand 2 o réu vasa «um olho a uma mula fugida atirando-lhe com uma pedra», do mesmo modo que na versão tibetana o brâmane atira uma pedra a um jumento fugido, quebrando-lhe uma perna. Em Percy há, como veremos, apenas um apagado vestígio destes episódios. Na versão alemã não há nenhum vestígio deles. A tabela ii permite num lance de olhos abraçar as variantes deste episódio.

28Como a forma «rabo arrancado a animal caído em atoleiro» se acha em versão de cada um dos três grupos é evidente que decorre da forma fundamental.

29As variantes explicam-se se admitindo que um narrador querendo enriquecer o conto inventou a forma do episódio em que se atira uma pedra a um animal que foge, simples imitação da forma mais antiga. Trancoso, que se acha separado dos grupos 2.° e 3.° pela falta dos episódios da bolsa e do penhor de carne, separa-se das outras versões que não conhecem esses episódios (Dsanglun e versão russa) pela fidelidade à forma primitiva neste episódio, pelo menos por este lado parece pois remontar directamente a essa forma.

30A tabela iii representa as versões no encadeamento que resulta do estudo deste episódio em combinação com a classificação nos três grupos: x é o estádio do nosso conto que não conhece ainda senão uma forma do episódio do animal lesado; z é o estádio em que esse episódio se desdobrou em duas formas: numa há um animal caído num atoleiro a que se arranca o rabo; noutra há um animal fugido a que se atira uma pedra vasando-lhe um olho. z experimenta então uma modificação secundária em z”: não é um animal caído num atoleiro, mas sim um animal emprestado a que é arrancado o rabo; para tornar mais simpático o pretendido réu introduziu-se também aqui a oposição entre um rico que empresta o animal e o pobre que se serve dele para o seu trabalho; mas a ideia fundamental do conto foi alterada, porque segundo essa ideia o réu devia evidententemente lesar o animal num acto de puro desinteresse. A versão russa, que, com a tibetana, deriva de z”, conservou-se fiel a essa forma nova do episódio, mas suprimiu o derivado secundário da forma primitiva, que desapareceu também noutras versões derivadas de z. No Dsanglun há reflexos das duas formas do nosso episódio, no estádio z ; mas a segunda forma reagiu sobre a primeira: o proprietário empresta um boi para o trabalho do brâmane; este quando lho leva deixa-o fugir. A segunda forma foi também alterada; há aqui, não um olho arrancado, mas uma perna quebrada ao cavalo fugido. Em Lutfullah a segunda forma do episódio fez desaparecer a primeira; mas aquela desapareceu em Patrañuelo, e Sercambi. Mornand nesta parte apresenta-se só como reflexo fiel do estádio z do nosso conto.

31O exame dos juízos correspondentes a estas formas do episódio A confirma as nossas reconstruções. Na versão russa, em Sercambi e Patrañuelo, o réu guardará o animal até que lhe cresça o rabo.

32Há aqui um paralelismo perfeito entre a sentença e a matéria da acusação, que evidentemente remonta à forma primitiva do nosso conto; a intenção do juiz é que o réu fique sempre com o animal, pois o rabo não lhe tornará a crescer. Em Trancoso as coisas acham-se entendidas à letra, e por isso, como pareceu absurdo que o rabo nascesse de novo, alterou-se um pouco, como vimos, o pleito. Em Mornand a amplificação e alteração dos dados primitivos em relação ao pleito do rabo arrancado são evidentes: o paralismo observado nas outras versões fica quebrado. No Dsanglun o acusador deve ter a língua cortada por ter dito ao réu que lhe enxotasse o jumento e o réu a mão cortada por lhe ter atirado a pedra; o réu deve ter a língua cortada, pois não disse ao proprietário que levava o boi, e o proprietário um olho arrancado, pois viu e não prendeu o boi. O equilíbrio está aqui também perturbado e a reacção de uma das formas do episódio e sentença correspondente salta aos olhos. A sentença correspondente em Lutfullah e Mornand à segunda forma do episódio A, é que o réu pague a quantia exigida pelo acusador, isto é, metade do valor que este lhe atribui, e que o animal seja partido ao meio, levando o réu a parte lesada. O facto do réu ter que pagar é oposto à ideia fundamental do conto, que parece ser que ele tenha sempre vantagens.

33Trancoso oferece uma particularidade que se encontra na versão russa: o acusador é irmão do réu; mas esta particularidade pode resultar de influência independente dos contos em que há um irmão rico, inimigo do pobre. É muito mais natural essa influência independente do que ter-se produzido independentemente a modificação em virtude da qual nas versões russa e tibetana figura um «animal emprestado». O «animal emprestado» e um «proprietário rico» parecem suficientes traços para aproximar as versões russa e tibetana. Resta ainda a possibilidade da reacção de duas versões, uma sobre a outra, reacção que embaraça a classificação das versões de um mesmo conto, mas que explica dificuldades que por vezes a sua história nos apresenta.

Episódio B

34Na versão russa o réu e o irmão entram numa «estalagem»: o rico senta-se com o estalajadeiro e come e bebe alegremente; o pobre, de quem não fazem caso, deita-se numa maca suspensa e, querendo ver o que se passava em baixo, chega-se demasiado à borda e cai sobre um berço, onde estava uma criança que fica morta. No Dsanglun o réu, cansado, entra numa «taberna», senta-se sobre o filho do taberneiro, o qual estava coberto com roupa e mata-o. Em Trancoso figura a estalagem, mas há um «aborto» produzido pelo desejo não satisfeito que a mulher do estalajadeiro tem de comer a cebola; isto conforma-se com uma crença popular espalhada.

35Em Lutfullah e no Patranuelo o réu fugindo faz cair uma mulher que «aborta»; em Sercambi o réu faz espantar um cavalo em que vai uma dama, que cai e aborta; na versão alemã o réu, dormindo a cavalo, atropela uma criança que corre diante do cavalo. Em Percy a este episódio corresponde G : o cavalo em que vai uma dama espanta-se com o ruído de uma pele de cabra que o réu leva às costas; a dama cai e arranca-se-lhe um olho. Há aqui evidentemente confusão do episódio da dama que aborta, com o do olho arrancado a um cavalo. A sentença correspondente ao pleito B em versão russa, Dsanglun, Lutfullah, versão alemã, Sercambi e Patrañuelo é que a mãe da criança tenha um filho do acusado. Esta sentença dá lugar no Patranuelo a uma amplificação de mau gosto.

36Trancoso alterou a sentença que não soaria bem aos ouvidos inquisitoriais e destoaria do tom devoto da obra; mas também na versão russa o estalajadeiro pode remir-se da sentença por uma reparação em dinheiro e géneros. Na Europa estas modificações suscitavam-se muito naturalmente.

37O episódio B aparece em todas as versões, excepto na de Mornand e de Percy (onde há, porém, como vimos, um vestígio dela); pertencia pois à forma fundamental do nosso conto. Nessa forma o episódio B era o segundo, como se vê claramente da tabela i. O episódio A era nela evidentemente o primeiro. A deslocação dos episódios nalgumas versões foi devida principalmente à adjunção de episódios novos no começo; mas além disso houve algumas permutações arbitrárias. Nas versões do 1.° tipo (Trancoso, russa, Dsanglun) a morte (ou aborto) da criança dá-se numa estalagem (ou taberna); nas outras versões no caminho. Pareceria o melhor meio de explicar as divergências admitir que na forma fundamental (x) o réu causava numa locanda o aborto à mulher do proprietário, de um modo absolutamente independente de sua vontade; mas as versões russa e tibetana, que de novo se aproximam aqui, e que fazem estar num berço uma criança que o réu por imprudência mata, representam com fidelidade a forma original do episódio, como veremos. Em z’ a forma do episódio fixou-se da seguinte maneira: o homem na estrada fugindo faz cair uma mulher que aborta. As modificações que apresentam as versões dos tipos 2.° e 3.° explicam-se facilmente. A modificação mais considerável é a da versão alemã, em que o réu vai a cavalo. A sentença correspondente a este episódio na forma x devia ser como na versão russa, Dsanglun, Lutfullah, versão alemã, Sercambi e Patrañuelo.

Episódio C

38Nas versões russa e Sercambi o réu, em desespero pela sua sorte, atira-se de uma ponte abaixo e mata, na versão russa, um velho doente que o filho leva ao banho, em Sercambi, um barqueiro que vai num barco; em Percy o réu quer atirar-se ao mar e cai sobre um pescador, que está num barco, matando-o; em Trancoso o réu, também em desespero, deita-se da muralha de Évora abaixo; mas em Évora, não havendo ponte, a modificação era forçada. Nessas versões o filho ou filhos (em Percy o irmão) do morto são os acusadores. No Dsanglun o brâmane, querendo fugir, salta de um muro abaixo e, caindo sobre um tecelão, mata-o; a mulher do morto é a acusadora. Em Lutfullah o réu, fugindo, salta e cai por uma pedreira sobre uma cabana e mata um homem, cujo filho é o acusador. Na versão alemã o réu cai involuntariamente por uma janela sobre um velho, que estava sentado num banco (como em Trancoso). Em Mornand o réu salta de um terraço para saber a causa de um motim, e cai sobre um homem que estava dormindo em baixo e mata-o; dois filhos do morto são os acusadores. A sentença correspondente é em todas as versões, excepto no Dsanglun, que o acusador ou acusadores se deitem sobre o réu do mesmo lugar (ou semelhante, Mornand) donde ele caiu sobre o homem que matou. No Dsanglun o réu deve casar com a mulher do tecelão, o que está de acordo com os costumes orientais; mas há aqui uma alteração evidente, resultante da influência do episódio da criança morta e sentença correspondente. O episódio C falta só no Patrañuelo; pertencia evidentemente à forma fundamental, em que, como se suspeita da concordância da maioria das versões dos três grupos, o réu em desespero se deitaria de uma ponte abaixo. Veremos ainda como esta forma se acha de acordo com o ponto de partida do nosso conto.

Episódio D

39O episódio D com que abrem as versões do segundo tipo (Lutfullah, Mornand, alemã) é o conto do «penhor de carne» do devedor exigido pelo credor, conto aproveitado por Shakespeare no Merchant of Venice e que aparece muitas vezes independentemente. H. Œsterley, Gesta Romanorum, p. 743, dá sobre essa tradição numerosas indicações com referência ao n.° 195, em que se acha o conto. As íntimas relações entre as versões Lutfullah e Mornand mostram que o episódio decorre de uma forma comum de que derivam as duas e que remontam a uma forma anterior oriental de que deriva também a versão alemã e em que o nosso conto se tinha enriquecido já com o do penhor de carne. Foi pela conexão das ideias dos dois contos que eles se ligaram, porque as nossas observações provam que o do penhor de carne não pertence à forma primitiva do Justo Juízo. É aquele de origem oriental ou ocidental? Passou do Oriente para o Ocidente ou seguiu um caminho inverso? Benfey opina pela origem oriental (Pantschatantra, i, 406); os seus argumentos não solvem o problema; mas a objecção de Œsterley (Johannis de Alta Silva Dolopathos, etc., Estrasburgo, 1873, p. xxi) não tem valor: o facto das versões orientais conhecidas serem muito mais modernas do que a obra do monge de Haute-Seuille não prova de modo algum que no Oriente a história não fosse muito mais antiga e que um dia mesmo se ache uma forma anterior ao século xii da nossa era, em que foi escrito o Dolopathos latino.

40Na Europa, em verdade, havia na tradição popular base para a formação do conto do penhor da carne. Nas leis romanas das doze tábuas havia a seguinte terrível disposição relativa aos devedores: «Si pluribus addictus sit, tertiis nundinis partes secando, si plus minusve secuerunt, se fraude esto»; os credores podiam pois cortar o devedor na razão dos seus créditos. J. Grimm (Deutsche Rechtsalterthümer, 2to Ausg., p. 616) aproxima dessa lei romana a tradição medieval do penhor de carne, mas observa que a forma desta é tão diversa que necessariamente deriva de outra fonte. Na tradição medieval o corte da carne tem por base um contrato; o credor não podia cortar nem mais nem menos; na lei romana a ratio corporis não se baseia sobre uma estipulação: é determinada só para o caso de vários credores e não havia fraude em cortar mais ou menos. Numa antiga lei norueguesa, citada por Grimm, prescreve-se: «se um devedor mostra malícia contra o seu credor, se não quer trabalhar para ele, pode o credor levá-lo a juízo e convidar os seus amigos a que o livrem da dívida; se os amigos não querem fazê-lo, o credor tem o poder de cortar do devedor o que quiser, de cima ou de baixo». Na Bretanha há uma espécie de ameaça proverbial: «Me’daillo korrean d’ehan», eu lhe cortarei grande correia (Revue celtique, ii, 378). Sauvé (ob. cit. p. 379) esclarece essa frase com a seguinte nota: «Dans les contes des Bretons armoricains (Luzel: Cinquième rapport sur une mission en Basse-Bretagne, Archives des missions scientifiques et litteraires, t. i, iiie série) et des Gaëls de l’Ecosse occidentale (Campbell: Popular tales of the west Highlands), il est souvent fait mention d’une étrange contume d’après laquelle, lorsqu’un engagement lie deux hommes, celui qui manque à sa parole se laisse tailler une bande de peau depuis le sommet de la tête jusqu’à la plante des pieds, et n’essaie point de se soustraire à cette torture. C’est peut être au souvenir d’une semblable contume que se rattachent ces paroles de Plaute, souvent citées: ‘de meo tergo degitur corium’ (c’est à mes risques et périls que l’on fait la chose).»

41Campbell, com efeito, na ob. cit. por Sauvé, t. ii, p. 1 e segs. (n.° xviii), publica um conto gaélico em que se acham combinados o conto do penhor da carne com dados do conto que serve de base à peça de Shakespeare Cymbeline. Na versão gaélica o credor poderá tirar ao devedor, segundo o contrato, no caso dele não pagar no prazo, uma «tira de pele da cabeça ao pé». Campbell diz que essa pena é mencionada noutras histórias e pensa que tal modo de tortura pode ser derivado dos Escandinavos, que outrora povoaram as ilhas ocidentais. Num conto da Bósnia, citado por R. Köhler (Orient und Occident, ii, 315), um judeu empresta dinheiro a um rapaz que precisa dele para se casar com a condição de lhe cortar um dracma da língua se em sete anos ele não lhe pagar.

42Na tradição portuguesa há um conto, que se reproduz noutros países, em que um amo faz um contrato com um criado em que há estipulado a penalidade de um tirar ao outro uma tira de pele, no caso de não cumprimento das condições3. Nas Enfermidades da Língua por Manuel José de Paiva (Lisboa, 1759) vem o provérbio: «Do couro lhe hão-de sair as corregas» (p. 116). O provérbio: «Da pele alheia, grande correia», parece, porém, ligar-se a outra ideia.

Episódio E

43Este episódio pelo qual começam as versões do 3.° tipo (Sercambi, Patrañuelo, Percy) consiste em Sercambi em que um homem acha uma bolsa com 90 peças e as entrega ao possuidor, que diz foram de lá roubadas pelo achador 10 peças; o juízo correspondente é que, visto a bolsa não ter as peças que o acusador diz, é outra, e o achador a guarde até aparecer o verdadeiro possuidor. Em Percy um negociante perdeu uma bolsa com 100 libras e promete 20 de alvíssaras; depois não só nega as alvíssaras ao que achou a bolsa, como diz que ele roubou 20 libras; a sentença é que o pobre guarde a bolsa, e o negociante o siga até que ele perca também uma bolsa que o negociante guardará. No Patranuelo há aqui também amplificações de mau gosto; a sentença segue-se imediatamente ao primeiro pleito, quebrando-se assim o plano do conto. Sercambi parece ser mais fiel do que Percy à forma original deste episódio. Juntou-se este episódio ao nosso conto na Europa ou provém de uma forma asiática desconhecida? Seria temerária uma afirmação quer num quer noutro sentido. Achámos o episódio da bolsa como conto independente numa colecção portuguesa feita sobre colecções francesas.

Episódios F e H

44O episódio 4 da versão tibetana consiste em que um homem leva um pequeno machado na boca; o réu pergunta-lhe se a água de um rio é funda, e o homem ao responder-lhe deixa cair o machado ao rio. O juízo correspondente é que visto o homem levar nos dentes o instrumento que devia levar às costas se lhe tirem dois dentes incisivos e ao réu se lhe corte a língua pela pergunta; o primeiro naturalmente não quer a execução da sentença e o segundo fica livre. Isto é quase uma repetição do juízo correspondente às duas formas do episódio A, na mesma versão. As modificações que a matéria primitiva do nosso conto experimentou no Dsanglun revelam pois um pobríssimo espírito inventivo.

45O episódio das casas (II) com que abre Trancoso não tem nada que ver com o carácter fundamental do nosso conto; parece ser uma adição muito recente, talvez do próprio Trancoso.

Episódios I e J

46Na versão tibetana há, como dissemos, um episódio (I) que tem por correspondente outro episódio, mas diferente, nas versões Lutfullah e Mornand. As outras versões nada apresentam semelhante. Antes de o brâmane, com todos os seus acusadores, chegar perante o rei que o há-de julgar, passa num lugar onde está um corvo em cima de uma árvore. A ave pergunta-lhe: «Para onde vais?» O brâmane responde: «Não vou de vontade; esta gente leva-me ao rei.» O corvo diz: «Leva ao rei esta mensagem; quando eu poiso em cima de outra árvore, a minha voz soa mal, mas quando eu poiso nesta, a minha voz é admiravelmente bela! Como é isto?» Mais adiante encontram uma cobra, que manda também uma mensagem ao rei: «Quando saio da minha toca, sinto-me bem, mas quando volto para lá sinto-me mal. Qual é a causa disto?» Depois encontram uma mulher nova que manda também fazer uma pergunta ao rei: «Quando estou em casa de meus pais, tenho saudades da casa de meu sogro; quando estou em casa de meu sogro, tenho saudades da casa de meus pais.» O rei respondeu a essas perguntas: «Debaixo da árvore, em cima da qual a voz do corvo soa bem, há ouro. A cobra quando sai, vem com vontade de comer e não está exaltada; quando volta está repleta e exaltada pelos ataques das aves. A mulher tem em casa dos pais um amante, por isso deseja ir para lá; mas quando está saciada dele suspira pelo marido.» Ele aconselha-a a nunca mais ir a uma das casas, vivendo sempre na outra: desse modo acabará o seu tormento.

47Casos semelhantes, que se apresentam como enigmas para resolver, ocorrem com frequência nos contos tradicionais.

48No Pentamerone de Basilio, iv, 8, há um carvalho que pede a uma rapariga para saber da mãe do Tempo como deve recuperar a honra perdida, pois que agora as suas bolotas servem de pasto aos porcos; um rato que deseja saber como se hão-de os ratos ver livres da tirania da gata, etc.; as respostas são que a árvore não pode ser mais querida, pois tem tesouros enterrados debaixo das raízes; os ratos não estarão seguros contra a gata enquanto não lhe atarem uma campainha às pernas que os avisará da sua aproximação, etc.

49No conto n.° 29 da colecção Grimm (Kinder und Hausmärchen), numa cidade deseja-se saber porque nem sequer dá água um poço que havia no mercado, e que dava vinho; noutra cidade porque uma árvore que dava maçãs de ouro já nem sequer deita folhas, e um barqueiro, que passa os viajantes sobre um rio, porque tem ele de andar para lá e para cá, sem nunca se ver livre desse mister? O herói do conto ouve do diabo no inferno, sem que este saiba que é ouvido por ele, a resposta às perguntas que lhe são dirigidas pela mãe: no fundo do poço está um sapo debaixo de uma pedra; morto o sapo brotará de novo o vinho; a árvore tem um rato que lhe rói a raiz; o barqueiro ficará livre quando entregar a vara a algum que vá para passar. Vid. os contos indicados por W. Grimm, ob. cit., iii, 56, e por R. Köhler, Archiv für slavische Philologie, v, 74,

50Na colecção de A. Schleicher, Litauische Märchen, u. s. w. (Weimar, 1857) pp. 71 e segs. (Von Fischer, der in den Himmel gieng), há um pescador que vai ao céu perguntar onde o pai do seu amo enterrou o dinheiro; no caminho uma baleia, que de velha lhe cresciam ervas nas costas, pede-lhe para perguntar a Deus que tempo ela trará ainda aquele prado às costas; duas raparigas, que estão em disputa sobre qual há-de ter uma maçã, desejam saber quando acabará a disputa; duas mulheres que tiram água de um poço sem nunca o esgotar para outro que nunca enchem, desejam saber quando acabará o seu trabalho; uma manada de bois muito bela, que está num campo, calvo e negro, deseja saber que tempo estará ali e permanecerá belo; uma manada de bois que, ao contrário, está metida na erva até ao ventre, mas magra e seca, quer saber que tempo estará tão magra em erva tão crescida; enfim, um homem que faz ofício de estaca segurando uma sebe, pede ao pescador que pergunte a Deus quando deixará de segurar a sebe. As respostas são: que o homem segurará a sebe até ao fim do mundo, por ter lançado por terra muitas árvores florescentes da floresta; os bois magros são almas de avarentos que não deram nada aos pobres e lhes lançaram os cães; ir-se-ão consumindo até não se poderem ter em pé; os bois gordos são almas de pessoas amigas de fazer bem, por isso estarão cada vez mais belos; as mulheres que despejam o poço são duas bruxas maléficas que continuarão no mesmo trabalho enquanto o mundo for mundo; as raparigas da maçã tinham pretendido um mesmo noivo, e como nenhuma o alcançasse tinham-no envenenado, por isso disputavam e disputariam sempre uma à outra a maçã; a baleia, que passava a gente sobre o mar, como tinha já sido causa de sua teimosia produzir a morte de muitos homens, por isso lhe cresciam as ervas em cima, e quanto mais elas crescessem mais louca ela ficaria.

51Na redacção turca do Tuti-Nameh (trad. alemã de Rosen, Leipzig, 1858.), ii, p. 280, há as seguintes perguntas: porque a barba e cabelo de um homem que envelhece se fazem brancas e não tomam outra cor e porque um homem fica mais belo com a barba e o cabelo branco, mas uma mulher se faz feia? Vejam-se outras indicações em Benfey, Pant, i, p. 395 n.

52Nos Contos Populares Portugueses, n.° 20, há uma passagem que se liga ao episódio das perguntas; figura nele um poço de que não sai água; um almocreve ouve dos diabos o meio fácil de fazer brotar a água. A doença misteriosa da princesa pode comparar-se à pergunta acerca da filha do rei, que de bela se tornou horrenda, em H. Pröhle, Märchen für die Jugend, n.° 8, que é uma variante de Grimm n.° 29.

53O conto português n.° 20 da nossa colecção pertence a um tipo distinto do de Grimm n.° 29, mas entre os dois há empréstimos determinados pelo facto de coincidirem em que tanto num como noutro um homem sabe de seres sobrenaturais e malévolos (diabos, ogres, etc.), sem que estes suspeitem que um homem os ouve, a explicação de certos casos enigmáticos.

54Numerosas versões do nosso conto n.° 20 se acham indicados por R. Köhler nas suas notas ao n.° 1 dos Volksmärchen aus Venetien (Jahrbuch f. rom. und eng. Litt., vii, pp. 6 e segs.) e nas suas notas ao conto eslavo meridional n.° 55 no Archiv für slavische Philologie, v, p. 69, e por E. Cosquin na nota ao n.° vii da colecção por ele publicada na Romania (v, pp. 345 e segs.).

55Em Lutfullah, como em Mornand, o réu com os seus acusadores encontram, indo perante o juiz, um velho embriagado e um homem vivo que vão enterrar. A explicação dada pelo juiz é a mesma nestas duas versões; o bêbado é um provador de bebidas, e do homem que enterram vivo asseveraram testemunhas que ele tinha morrido; em Lutfullah acrescenta-se que não pode, pois, ser mais do que um fantasma. Mornand observa: «Na legislação oriental não se admite jamais a negativa, isto é, dizer-se que um facto não existiu. O facto uma vez provado não pode nunca mais ser desmentido. Assim a morte se prova pela declaração do falecimento, feita perante o cádi e aprovada pelo testemunho de duas pessoas.»

56A correspondência entre os dois episódios quanto ao lugar e ainda quanto ao seu carácter geral (trata-se de explicar umas perguntas ou uns encontros enigmáticos) pode fazer crer que uma das formas do episódio se achava numa versão de que decorrem a tibetana, Mornand e Lutfullah, de modo que, ou na tibetana ou naquelas outras duas, se substituísse uma forma nova à antiga; mas a interdependência das diferentes versões que indicamos na tabela iii, como provenientes de um estádio z, faria admitir que, ou o episódio I ou o episódio J, se achava nesse estádio z, sendo esquecido nas versões russa, alemã, Sercambi, Patrañuelo e Percy. A correspondência pode ser casual.

57A inspecção da nossa tabela I e a discussão a que acabamos de proceder provam-nos à evidência que o nosso conto na sua forma fundamental era composto dos três episódios A, B e C, sucedendo-se muito provavelmente na mesma ordem em que os achamos na versão russa. Esse conto não tem absolutamente nada de mítico; entra no ciclo dos juízos salomónicos; e não pode pois ser considerado senão como um produto artístico reflectido. Benfey crê, com razão, que ele teve por ponto de partida a casuística búdica. Eis o que nos conta um bom conhecedor das tradições búdicas:

58«In the city of Wisala there was a priest, who one day, on going with the alms-bowl, sat down upon a chair that was covered with a cloth, by which he killed a child that was underneath. About the same time these was a priest who received food mixed with poison into his alms-bowl, which he gave to another priest, not knowing that it was poisoned, and the priest died. Both of these priests went to Budha, and in much sorrow informed him of what had taken place. The sage declared, after hearing their story, that the priest who gave the poisoned food, though it caused the death of another priest, was innocent, because he had done it unwittingly; but that the priest who sat upon the chair, though it only caused the death of a child, was guilty as he had not taken the proper precaution to look under the cloth, and had sat down without being invited by the householder.» R. Spence Hardy, A Manual of Budhism, pp. 463-4. Eastern Monachism, p. 152.

59«In the time of Gótama there was a priest who was under the influence of passion; and as he was unable to maintain his purity he thought it would better to die than to continue under this restraint.

60He therefore threw himself from a precipice near the rock Gijakúta; but it happened that as he came down he fell upon a man who had come to the forest to cut bamboos, whom he killed, though he did not succeed in taking his own life. From having taken the life of another he supposed that he had become párájiká, or excluded from the priesterhood; but when he informed Budha of what had taken place, the sage declared that it was not so, as he had killed the man unintentionally; his intentions being to take his own life. Budha, however, made a law forbidding the priests to commit suicide. Several stories are related in the Tibetan Dul-vá, of suicide or poisoning among the priests, or of causing themselves to be slain or deprived of life, out of grief or despair, upon hearing of the various kinds of miseries or calamities of life. R. Spence Hardy, Eastern Monachism, pp. 151-2. London, 1850. Id., A. Manual of Budhism, p. 464. London, 1860.»

61Assim achamos na casuística búdica a fonte de dois dos episódios do nosso conto. Na primeira das passagens citadas, Gotama (o Buda) julga um sacerdote que imprudentemente se sentou numa casa sobre uma criança e a matou; na segunda a sentença refere-se a um sacerdote que em desespero pelas misérias da vida, se lança de um precipício e, sem morrer, mata um homem. Depois que os trabalhos de Benfey demonstraram que um grande número dos contos espalhados no Oriente e no Ocidente saíram das tradições búdicas, ou pelo menos foram fixados numa forma sobre que assentam as suas formas actuais, nos livros búdicos, não se poderá hesitar um só momento em ver realmente o ponto de partida do nosso conto naqueles casus conscientiae.

62Mas não foi por um desenvolvimento espontâneo que o conto se formou com aqueles elementos: temos necessariamente de admitir a intervenção de um contista, de um artista que, com espírito e consequência, aproveitou as sugestões da casuística búdica e fez uma narração que na sua forma original consistiria, abstraindo das minudências, pouco mais ou menos no seguinte:

63«Um pobre homem quer ajudar a tirar um animal de carga caído num atoleiro; mas ao puxar por ele, arranca-lhe o rabo. O dono exige uma reparação, o pobre reclama e resolvem ir a um certo juiz (talvez um rei) célebre pelas suas sentenças para resolver o seu pleito. No caminho repousam numa taberna, onde o pobre cai ou se senta sobre uma criança que estava num berço oculta entre roupa; o pai da criança reclama e vai também para ouvir sentença sobre o caso. Chegados a uma ponte, o pobre em desespero, julgando-se perdido, atira-se dela abaixo, mas cai sobre um homem que estava num barco e mata-o; o filho do homem morto vai reclamar também justiça. O juiz sentencia: que o pobre guarde o animal até lhe crescer de novo o rabo; que leve a mulher até que ela tenha um filho, mas que primeiro vá pôr-se no barco para que o filho do homem morto se atire da ponte sobre ele.»

64Sem dúvida que o conhecimento de outras versões, que talvez existam, do conto do Justo Juízo, permitiriam determinar com mais firmeza as feições do tipo primitivo; mas essa forma reconstruída está de acordo com os resultados da nossa discussão e com os casos búdicos citados.

65Nenhuma das versões examinadas é proveniente de outra dessas versões: são pois todas independentes entre si. Os redactotes delas acharam-nas na tradição oral ou beberam-nas de fontes literárias? Eis o que é difícil de resolver, porque estamos ainda bem longe de conhecer todos os multíplices canais de circulação dos contos.

66A hipótese de uma fonte literária fica sempre de pé, ainda que sejamos inclinados a admitir que parte dessas versões (a de Trancoso, por exemplo) foram colhidas da tradição oral.

67O sumário da Novella di Busotto, que vamos reproduzir, mostra-nos que ela pertence aos contos do terceiro tipo, em que há o episódio da bolsa.

68«Novella di Bussoto aquarolo, El quale per ajutare rizzare un Asino d’un mugnaio ch’era caduto, gli spiccó per disgrazia la coda, e fuggendosi per paura, si riscontrò per strada in una giovane gravita, e urtandola, la fece cadere cascandogli anch’esso addosso, onde la giovane per il dolore si sconciò, e partori quivi una creatura morta, detto Bussoto seguitando, pur di fuggire e Birri el seguitavono per pigliarlo, per una borsa di danari che haveva trovata, e rendutala à chi non era sua. E alla fine preso lo menorno alia ragione. Dove el Giudice dette tre belle sentenze in favore di detto Bussoto.»

69Notaremos por último mais alguns factos, além dos já indicados, que nos mostram na tradição europeia elementos simples, separados, do nosso conto, ou da mesma natureza dos que serviram para o compor.

70O episódio do homem que, caindo, mata outro e da pena de talião correspondente parece ser popular em Portugal; pelo menos tem sido contada muitas vezes como anedota, em que figura como juiz D. João V, ao qual a imaginação popular atribui um certo número de aventuras tradicionais, e como réu um pedreiro que nas obras de Mafra caíra de um andaime sobre um homem, matando-o, e como autor do processo o filho do morto.

71Já anteriormente a Sercambi (n. 1347), num antigo fabliau em Méon, i, pp. 87-90, Le Grand d’Aussy, ii, p. 164, condensado por Le Clerc na Histoire littéraire de la France, xxiii, p. 210, achamos o seguinte conto :

72«Um pescador, tirando com o seu croque um homem caído ao mar, salvou-lhe a vida, mas arrancou-lhe um olho. O afogado, pouco a pouco restabelecido pelos cuidados do pescador, queixa-se, perante o maire, do vilão que lhe tirou o olho. O juiz, indeciso, não sabia como havia de julgar o processo, quando um personagem desconhecido, um sot, toma a palavra e diz: ‘Ponham-se as coisas como elas estavam; deite-se o compadre à água; se ele escapar, deve receber reparação pelo seu olho.’ O compadre naturalmente desiste do pleito.»

73Le Clerc compara esse conto com a fábula em que um animal tendo sido livrado por um homem o quer depois matar, alegando suas razões; um homem ou animal a que se recorre como juiz diz que o animal ingrato seja posto no lugar onde o homem o encontrou a fim de bem julgar o caso e por essa artimanha é posto fora do perigo o libertador; mas a relação do fabliau com o conto do justo juízo é evidente e faz pôr de lado a pretendida analogia notada por Le Clerc.4

74Por último notamos que o episódio da bolsa se acha como conto independente no Libro de los enxemplos (Gayangos-Rivadeneyra), n.° 311, para onde passou da Disciplina clericalis, segundo Gayangos.

2. Adágios originados de contos

75Para explicar adágios correntes em diversos países têm, ora o povo, ora os eruditos, inventado ou adaptado diversos contos; citaremos só a colecção de Cinthio dei Fabrizzi5 e a série quarta dos Contos Populares Sicilianos, reunidos pelo nosso amigo Giuseppe Pitré. O processo contrário deu-se também muitas vezes: esqueceu-se o conto e ficou um provérbio que o resume, e se ainda aquele não se esqueceu, o provérbio alude a ele de um modo que o povo facilmente o reconhece. Assim diz-se entre nós: príncipe com orelhas de burro, quando se quer significar um segredo que, apesar de todos os esforços, é afinal apregoado por muitas bocas; ora esse dizer proverbial alude ao conto de Midas, que será objecto de um destes nossos estudos (Contos Populares Portugueses, n.° 41).

76Jorge Ferreira de Vasconcelos recheou, como sabem todos os nossos leitores, as suas comédias de locuções e adágios, a maior parte dos quais vivem ainda na tradição oral do nosso povo; mas – pode enunciar-se esta questão – foi o veio popular o único explorado para com o ouro lá colhido fazer brilhar as cenas pouco animadas daquelas composições, ou num ou outro caso o autor da Eufrosina se contentou em traduzir dos escritores clássicos alguns adágios que lhe vinham a propósito? Essa questão é muito difícil de resolver nos casos em que os adágios empregados por aquele escritor não foram ainda achados na boca do povo; dada esta circunstância, é quase evidente que eles foram bebidos na fonte popular, mas, se ela falha, fica-se em dúvida. A forma é em geral insuficiente para resolver acerca do portuguesismo de uma tradição de tão pouca extensão, como é um adágio; um escritor como Jorge Ferreira facilmente poderia dar a uma simples tradução a forma popular; o paralelismo da forma entre o provérbio clássico e o provérbio português é também insuficiente para concluir a existência de um empréstimo directo. Nas palavras isoladas é possível na maioria dos casos conhecer quais as que vieram pela corrente tradicional do latino e das outras línguas fontes, quais as que trouxe a corrente literária e erudita; o fenómeno das formas divergentes, doublets, Scheideformen, está estudado nas suas leis por Brachet, C. Michaelis de Vasconcelos, Canello e o autor deste artigo, para o francês, o espanhol, o italiano e o português. Se ao linguista apresentam as palavras francesas chétif e captivus, as espanholas hecho e facto, as portuguesas caudal e capital, ele dirá sem hesitar, e com plena certeza, que conquanto cada um desses pares de palavras tenham a mesma origem, chétif, hecho e caudal, são formas que trazidas pelos Romanos à Gália e à península se alteraram lá e aqui na boca do povo e se transmitiram oralmente até hoje, enquanto captif, facto e capital não se explicam pela conquista romana; a sua existência nas nossas línguas modernas supõe apenas a existência da literatura latina e de eruditos que as foram buscar aos monumentos dessa literatura. Jorge Ferreira na comédia Eufrosina emprega o seguinte adágio (acto 1, cena 4):

77«Muitas coisas sabe a raposa e o ouriço-cacheiro uma só» – o qual corresponde rigorosamente ao seguinte grego:

78«Poll’oid’alopex, all’ekhinos en mega» – à letra: «muitas sabe a raposa, mas o ouriço uma grande» (ou antes «boa»).

79A paremiologia comparada, a literatura comparada, conquanto disciplinas de método severo, não podem proceder com o mesmo rigor que a linguística, rigor que dá a esta ciência um lugar especial e único no quadro das ciências históricas. O adágio citado não se acha, ao que parece, na tradição oral portuguesa de hoje, pelo menos não foi ainda achado por nós, que há anos exploramos essa mina; logo ficamos em dúvida se o autor da Eufrosina reproduziu o provérbio segundo uma fonte literária, se segundo a fonte popular.

80A questão resolver-se-ia no segundo sentido se na tradição portuguesa se encontrasse ou o adágio, ou um conto de que ele é, ao que parece, o resumo e de que conhecemos a seguinte versão da Grécia moderna, colhida em Agia Anna, ao norte da Eubea pelo falecido cônsul alemão J. G. v. Hahn (Griechische und albanesische Märchen. Leipzig, 1864, 2 vol., n.° 91):

81«Era uma vez um ouriço-cacheiro e uma raposa, que se encontraram no tempo da vindima; e vai a raposa disse ao ouriço: ‘Anda comigo; iremos roubar uvas ao vinhedo.’ Respondeu o ouriço: ‘Nada, não vou; tenho medo das ratoeiras que por lá armaram.’ Mas a raposa replicou: ‘Não tenhas medo; não te sucederá mal nenhum, porque eu sei três sacos cheios de manhas.’ Então andaram de companhia e comeram a fartar; mas quando queriam voltar, caiu a raposa numa ratoeira e pôs-se a gritar: ‘Acode-me, ouriço-cacheiro, que caí na ratoeira!’, e ele disse: ‘Abre os sacos das manhas para que elas te livrem.’ Mas a raposa replicou: ‘Saltei por cima de um barranco e lá me caíram todas as manhas; se tu soubesses de alguma!’ Respondeu o ouriço-cacheiro: ‘Sei de duas; uma é que tu, quando vier o lavrador, te finjas morta, e a outra é que nessa posição soltes muitos ventos; ele julgará que tu já cheiras mal (pela putrefacção), deitar-te-á fora e assim escapas daí.’ Fez a raposa como lhe aconselhou o ouriço-cacheiro e, quando veio o lavrador e viu que a raposa já cheirava mal, deitou-a fora da vinha e ela escapou assim.

82Outra vez perguntou de novo a raposa ao ouriço-cacheiro se ele queria ir ao vinhedo comer uvas, e como lhe correra bem da primeira vez, foi ele ainda desta vez. Depois de comerem à grande, quando queriam retirar-se, o ouriço-cacheiro caiu numa ratoeira e começou a gritar: ‘Acode-me Dona Maru; eu caí na ratoeira; solta as manhas e livra-me da ratoeira.’ A raposa replicou: ‘Saltei outra vez por cima de um barranco e lá me caíram todas as manhas.’ O ouriço-cacheiro disse: ‘Visto que eu vou morrer aqui, absolve-me de meus pecados.’ Então disse a raposa: ‘Absolve-me dos meus pecados, como eu te absolvo dos teus, e que Deus te perdoe.’ Depois pediu-lhe o ouriço-cacheiro: ‘Chega-te aqui mais perto; abracemo-nos ainda mais uma vez, pois vivemos tanto tempo em campanhia.’ Aproximou-se a raposa e abraçaram-se. O ouriço-cacheiro disse: ‘Hás-de dar-me também um beijo na boca.’ A raposa assim fez; mas o ouriço apertou-lhe a língua com os dentes e segurou-a firmemente até que veio o lavrador, e quando este viu como o ouriço tinha presa a raposa, riu-se e bateu tanto na raposa até que a matou e deixou ir o ouriço-cacheiro.»

83Noutras versões do conto da raposa com o saco de manhas, figura, em lugar do ouriço, o gato. A bibliografia desse conto acha-se indicada por W. Grimm no vol. iii, p. 125, dos Kinder und Hausmärchen, nota ao n.° 75, H. Œsterley, Romulus, ap. 20, e R. Köhler, Awarische Texte, nota ao n.° 7.

2. Quebrarei a mim um olho por quebrar-te a ti outro

84No conto 9 da primeira parte da colecção de Gonçalo Fernandes Trancoso, um rei quer fazer as pazes entre dois vizinhos, inimigos acérrimos; para isso diz que um peça tudo quanto quiser e que o que não pedir receberá exactamente o dobro do que o primeiro tiver; mas eles não gostaram da proposta, porque um ficaria sempre, por mais que pedisse, só com metade do que havia de receber o outro. Lançaram sortes sobre qual havia de pedir primeiro e aquele em que caiu a sorte pediu ao rei que lhe desse na sua mão um dos próprios olhos, um dos olhos dele que pedia, para que deste modo ao outro fossem arrancados ambos os olhos.

85A ideia deste conto acha-se já tratada no fabulista Aviano (fim do séc. IV ou começo do v; Teuffel, Röm. Literaturgeschichte, § 450), fáb. 42 e repetidas vezes depois, até em hebreu.

86Num poema moral francês do séc. xiii, Les Enseignements Trebor, acha-se essa história, analisada como segue na Histoire littéraire de la France, vol. xiii, 237:

87«Deux voyageurs, l’un envieux, l’autre convoiteux, suivent la même route. Jupiter, qui les épie du haut du ciel, descend sur la terre, prend la forme humaine, et leur demande s’ils vont à Cologne. ‘Oui, répondent-ils; mais qui êtes-vous?’

Cil lor a dit en sa reson:
‘Seinurs, Jupiter ai-je nun;
Si sui un des dex de là sus.
Si m’engendra danz Saturnus
De la deesse Veneris.
Venu sui ore en cest país;
Por voz amors m’i plout torner,
Kar je vos voil un don doner.
L’un de vos aura sa demande
Qu’il requerra, jà n’iert si grande,
Et ou tesant si iert doublée:
Isi le fet la destinée.’

88Le convoiteux ne veux rien demander, de peur que son compagnon n’ait le double; et l’envieux, à plus forte raison, garde le silence. En vain ils essayent longtemps de se persuader l’un 1’autre: ni l’un ni l’autre ne censent à mettre à profit la bonne volonté du dieu. Le plus méchant, l’envieux, se décide enfin, et il demande à Jupiter qu’il lui fasse perdre un oeil:

‘Kar donc devra mun compaignon
Les suens deus perdre por reson.’

89‘C’est juste’, dit Jupiter, et son Oracle s’accomplit. L’un des deux voyageurs devient borgne, et l’autre aveugle.»

90O adágio português «quebrarei a mim um olho por quebrar-te a ti outro», parece ser um eco desse conto.

3. Quem lançará a cascavel ao gato ?

91Este adágio que significa: quem fará tal acção difícil?, não se compreende bem, senão tendo em vista ser ele o eco de uma fábula em que os heróis são ratos; os nossos leitores lembrar-se-ão imediatamente da fábula de La Fontaine Conseil tenu par les rats:

Un chat, nommé Rodilardus,
Faisait de rats telle déconfiture
Que l’on n’en voyait presque plus...
………………………………………

Dès l’abord, leur doyen, personne fort prudent,
Opina qu’il fallait, et plus tôt que plus tard,
Attacher un grelot au cou de Rodilard.
………………………………………

La difficulté fut d’attacher le grelot.
L’un dit: «Je n’y vas point, je ne suis pas si sot;»
L’autre: «Je ne saurais.»

92Nas Narrationes de Odo de Ciringtonia (segunda metade do séc. xii) publicadas por H. CEsterley (Jahrbuch f. rom. u. engl. Lit., ix, pp. 121 e segs.) n.° xxvi acha-se a versão seguinte De muris et cato:

93«Mures habuerunt semel consilium inter se, qualiter se a cato possent premunire. Et ait quidam mus sapiens: Ligetur campanella in collo ejus, et tunc poterimus ipsum quocuncque perrexit andire, et insídias ejus precavere. Et placuit omnibus hoc consilium. Et ait unus quidam: Quis ligabit campanellum ad collum cati? Respondit alius: Certe non ego. Et alius: non ego pro toto mundo nollem ei tantum appropinquare.»

94A fábula tem sido narrada muitas vezes. Cf. um episódio mencionado por nós na p 130.

Nota

95O conto do criado e do amo que contratam tirar um ao outro uma tira de pele, etc., foi estudado de novo por E. Cosquin, Romania, vn, pp. 558- -563, nota ao n.° 86 dos Contes lorrains. Vid. ainda R. Köhler em Zeitschrift für rom. Philologie, III, p. 157.