O que está lei representa para a comunidade surda

por Leandro Calbente*

Em 2002, o governo brasileiro sancionou a Lei 10.436 que reconheceu a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como meio legal de comunicação e expressão. Isso garantiu um importante direito à comunidade surda brasileira, o de ter sua língua reconhecida social e legalmente, garantindo inclusive uma base jurídica para a luta pela criação de escolas bilíngues, nas quais os alunos surdos poderiam utilizar a Libras como língua principal de comunicação e instrução.

A criação dessa lei foi o resultado de uma longa luta da comunidade surda contra o processo de exclusão que historicamente se constituiu em nossa sociedade. Um dos exemplos mais claros dessa exclusão foi a maneira pela qual se estruturou o sistema de ensino de pessoas surdas ao longo do tempo. Para entender isso, vale resgatar alguns elementos da história da educação dos surdos.

Até o século XVIII, não existiram iniciativas sistemáticas para a instrução de pessoas surdas nas sociedades ocidentais. Muitos até acreditavam que os surdos eram pessoas incapazes de aprender por conta da falta de audição e da impossibilidade de se comunicarem oralmente. Isso, porém, mudou no final do século XVIII, quando alguns educadores começaram a organizar as primeiras instituições dedicadas ao ensino de pessoas surdas em diversos países da Europa.

Nesse caso, foi na França que surgiu uma das iniciativas mais importantes de ensino de surdos naquele período. O religioso Charles-Michel de l’Épée trabalhou com diversas crianças surdas e passou a utilizar um sistema de ensino baseado em uma adaptação da língua de sinais francesa (LSF). O sucesso de seu trabalho lhe proporcionou grande renome e lhe garantiu o apoio do Estado francês para ampliar o número de alunos surdos que atendia, além de divulgar suas ideias nos círculos intelectuais do período.

Após a morte do religioso, em 1789, o governo francês decidiu transformar a instituição criada em uma escola pública. Foi isso que deu origem a primeira escola de surdos do mundo ocidental, o Instituto Nacional de Surdos de Paris, que existe até hoje. A nova escola utilizava um método de ensino chamado de manualista, pois os alunos eram instruídos no francês escrito por meio de um sistema que adaptava a língua de sinais, chamado de sinais metódicos. Porém, o método manualista não foi o único criado na época.

Muitos pedagogos e médicos defendiam um método chamado de oralista, no qual o papel da educação era ensinar os surdos a se comunicarem por meio da fala e da leitura labial. Para isso, esses indivíduos desenvolveram uma série de técnicas que permitiam o treinamento da fala mesmo em pessoas que nasceram surdas. O processo envolvia exercícios minuciosos e bastante árduos, que exigiam anos de prática para que os surdos se tornassem capazes de articular palavras e frases. E o maior problema era que muitos surdos nunca se tornavam plenamente capazes de se comunicar oralmente, mesmo quando submetidos ao rigoroso treinamento criado nessas escolas.

Ao longo do século XIX, surgiram inúmeras instituições de ensino de pessoas surdas na Europa e em outras regiões do mundo. No Brasil, por exemplo, a primeira escola de pessoas surdas, o Instituto Nacional de Educação de Surdos, que existe até o presente no Rio de Janeiro, foi criada em 1857. Nessas diversas instituições, houve uma intensa disputa entre variações de métodos oralistas e manualistas, já que pedagogos, médicos e outros especialistas divergiam sobre as melhores possibilidades de educação dos surdos.

A própria comunidade surda, desde o século XIX, defende que a única maneira de promover a inclusão social de forma mais igualitária possível era por meio do ensino a partir de métodos manualistas, e com a participação de professores surdos na organização das escolas e das instituições de surdos. Apesar disso, no final do século XIX, o oralismo se consolidando como o único que deveria ser utilizado nas escolas de surdos.

Isso foi consequência de uma perspectiva que enxergava as línguas de sinais como ameaça ao aprendizado das línguas nacionais, o que resultou em uma política na qual se tentava proibir os surdos de aprenderem a se comunicar por meio de sinais nas escolas e em outras instituições que atendiam pessoas surdas. Essa hegemonia do método oralista se disseminou por toda parte, inclusive no Brasil, até meados do século XX.

O problema é que os resultados das escolas oralistas foram bastante negativos, contribuindo para reforçar a exclusão social dos surdos. Poucos surdos saiam das escolas aptos a uma comunicação oral e, como as línguas de sinais eram proibidas, o aprendizado de conteúdos escolares ficava seriamente comprometido. Assim, as escolas oralistas não possibilitavam a inclusão dos surdos e ainda resultavam em uma formação deficitária, que agravava os problemas da exclusão social associados às dificuldades de comunicação entre surdos e ouvintes.

Por isso, muitos surdos lutaram por mudanças e pelo abandono dos métodos oralistas. Esse movimento ocorreu em diversos países e teve sucesso no reconhecimento da importância da língua de sinais para a formação das pessoas surdas, bem como na necessidade de se abandonar as práticas oralistas nas escolas com a finalidade de diminuir a exclusão e promover a inclusão das pessoas.

No caso brasileiro, a lei de 2002 pode ser vista como um desdobramento dessa luta. Ainda assim, apenas o reconhecimento da Libras não é suficiente para garantir a plena inclusão das pessoas surdas em nossa sociedade. A comunidade surda brasileira continua lutando pela criação da chamada educação bilíngue, na qual a Libras seria a língua principal de instrução e de comunicação e o português seria ensinado apenas em sua modalidade escrita, a fim de propiciar a leitura e a escrita dos surdos.

Vale destacar que posteriormente, outras leis e decretos importantes foram criados, como é o caso do Decreto 5626 de 2005, o qual regulamentou a lei de 2002 e determinou formas de implementação do ensino de Libras e também da escolarização bilíngue das pessoas surdas. Outro importante marco legal foi o Decreto 6949 de 2009. Este transformou em emenda constitucional as decisões estabelecidas na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realizada pela ONU em 2006.

Com isso, o governo brasileiro passou a reconhecer que todas as políticas públicas destinadas às pessoas com deficiência deveriam ser discutidas com as organizações que representam essas pessoas, ampliando os direitos de participação política e tomada de decisão das pessoas com deficiência. Além disso, esse decreto reforçou mais uma vez a importância da educação bilíngue para pessoas surdas e o direito ao uso da língua de sinais como meio de comunicação e expressão dos surdos.

De forma análoga, a Lei 12.319 de 2010, que regulamentou a profissão do tradutor e intérprete de Libras, e o Segundo Plano Nacional de Educação (criado pela Lei 13.005 de 2014), que determinou a criação de espaços escolares bilíngues para pessoas surdas, são também exemplos de como a luta das pessoas surdas possibilitou a criação de garantias legais de direitos linguísticos e educacionais à comunidade surda brasileira.

Ainda assim, na prática, existem poucas instituições escolares brasileiras que efetivamente oferecem uma educação bilíngue capaz de promover uma educação de qualidade e ações que contribuam para a legítima inclusão dos surdos no Brasil, por isso a luta da comunidade surda continua necessária e urgente em nosso país.

Para saber mais

Lei 10.436 de 2002: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10436.htm

Decreto 5.626 de 2005: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/d5626.htm

Decreto 6.949 de 2009: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm

Lei 12.319 de 2010: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12319.htm

Lei 13.005 de 2014: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm

*Leandro Calbente é doutorando em educação, pesquisador e professor. E-mail:

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COMUNICAÇÃO

Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos reconhece desafios e conquistas no dia nacional da Língua Brasileira de Sinais

O dia nacional da Língua Brasileira de Sinais (Libras), celebrado neste sábado (24), marca os 19 anos da Lei nº 10.436/2002 que reconheceu a Libras como meio legal de comunicação e expressão dos surdos. A data comemorativa remete à reflexão sobre as barreiras enfrentadas pela comunidade surda e lembra da importância do aprendizado para todas as pessoas. A língua de sinais é uma forma de comunicação caracterizada pela modalidade visual-espacial.

Em recordação ao marco histórico para a comunidade surda, a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (SNDPD/MMFDH), afirma que a lei deu uma maior visibilidade para a Libras e para a comunidade surda.

“Quebrar as barreiras da acessibilidade comunicacional exige que a gente rompa os nossos preconceitos e se aproxime mais da comunidade surda”, explica a titular da SNDPD, Priscilla Gaspar.

Desde 2005, a Libras é obrigatória para o curso de licenciatura, pedagogia e fonoaudiologia. Contudo, a realidade da educação inclusiva brasileira ainda apresenta um quadro de dificuldades para alunos surdos ou com outras deficiências nas salas do ensino regular.

“A comunicação não pode ser o grande empecilho no desenvolvimento da pessoa surda, e, por isso, é preciso ter mais pessoas capacitadas com domínio da língua para atendê-los em seus direitos”, enfatiza a secretária.

Com uma população de mais de 10 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a SNDPD destaca algumas ações da pasta para este público.

Avaliação biopsicossocial

Para atender ao que pede a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), o presidente da República, Jair Bolsonaro, assinou o decreto de criação do grupo de trabalho interinstitucional que irá propor o Modelo Único de Avaliação Biopsicossocial da Deficiência. Coordenado pelo MMFDH, o grupo vai formular, propor a criação e a alteração de instrumentos e atos normativos necessários à implementação unificada da avaliação biopsicossocial da deficiência em âmbito federal.

A definição do modelo único de avaliação vem para regulamentar o artigo 2º da LBI, que determina que a avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar. Os instrumentos e normativos da avaliação também deverão considerar os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, além da limitação no desempenho de atividades e a restrição de participação.

Cadastro-Inclusão

Para regulamentar o artigo 92 da LBI, que trata do Cadastro Nacional de Inclusão da Pessoa com Deficiência o MMFDH e o Ministério da Educação (MEC) assinaram protocolo de intenções para operacionalizar o sistema.

O cadastro tem o propósito de coletar, processar, sistematizar e disseminar informações georreferenciadas que permitam a identificação e a caracterização socioeconômica da pessoa com deficiência e, também, das barreiras que impedem a realização de seus direitos.

Ao reunir informações sobre os brasileiros com deficiência em um só lugar, o Cadastro-Inclusão facilitará a formulação, a gestão, o monitoramento e a avaliação de políticas públicas. Também permitirá identificar barreiras que impedem o gozo de direitos.

Cartilhas informativas

A SNDPD desenvolveu cartilhas acessíveis, em formato html, destinadas a orientar as pessoas com deficiência, os profissionais da saúde e os demais cidadãos durante a pandemia do coronavírus. Todas as cartilhas produzidas pela Secretaria estão disponíveis no site do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Canais de denúncia

Ampliação da acessibilidade nos canais de denúncia disponíveis via Disque 100, Ligue 180 e por meio do aplicativo “Direitos Humanos Brasil” que dispõe de atendimento em Libras, por videochamada com profissionais tradutores e intérpretes.

Ferramenta Wikilibras

Em julho de 2020, a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital, do Ministério da Economia (SEDGGD/ME) e a SNDPD, firmaram um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) para estabelecer a sinergia de ações no processo de avaliação, melhoria, colaboração, gestão e apropriação das ferramentas da Suíte VLibras (Wikilibras).

A ferramenta oferece à comunidade surda uma forma de acesso à imensa quantidade de conteúdo que é disponibilizada a todo momento na internet.

O acordo prevê o planejamento de uma política de acessibilidade capaz de reunir a comunidade interessada para a operacionalização do processo de correção e colaboração na introdução de novos sinais na plataforma e a melhoria contínua do processo de tradução. O pacote também inclui videoaulas para animadores e sobre as regras de descrição formal da língua de sinais.

Para dúvidas e mais informações:

Atendimento exclusivo à imprensa:Assessoria de Comunicação Social do MMFDH

(61) 2027-3525

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