Em relação às teorias do currículo, quando se fala em ideologia

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  • Segundo a discussão sobre as teorias do currículo, apresentada por Silva (2010) em seu livro Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo, leia as sentenças abaixo.

    I) Com a noção de que o currículo é uma construção social, aprendemos que a pergunta importante não é “quais conhecimentos são considerados válidos?”, mas “quais conhecimentos são verdadeiramente válidos?”.

    II) As teorias pós-críticas continuam a enfatizar que o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder nas quais ele está envolvido. Nas teorias pós-críticas, entretanto, o poder está espalhado por toda a rede social. O mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade.

    III) As teorias críticas sustentam que o currículo é uma invenção social, mantendo certa noção realista de currículo. Se a ideologia cedesse lugar ao verdadeiro conhecimento, o currículo e a sociedade seriam emancipados e libertados.

    IV) As teorias tradicionais enfatizam os conceitos de ensino, aprendizagem, avaliação, metodologia, didática, organização, planejamento, eficiência, objetivos.

    V) As teorias críticas enfatizam os conceitos de ideologia, reprodução cultural e social, poder, classe social, capitalismo, relações sociais de produção, conscientização, emancipação e libertação, currículo oculto, resistência, gênero, etnia e sexualidade. Assinale a alternativa que contém somente os itens coerentes com a visão do autor do livro.

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 Teorias do currículo: o que é isto?

O que é uma teoria do currículo? Quando se pode dizer que se tem uma "teoria do currículo"? Onde começa e como se desenvolve a história das teorias do currículo? O que distingue uma "teoria do currículo" da teoria educacional mais ampla? Quais são as principais teorias do currículo? O que distingue as teorias tradicionais das teorias críticas do currículo? E o que distingue as teorias críticas do currículo das teorias pós-críticas?

Podemos começar pela discussão da própria noção de "teoria". Em geral, está implícita, na noção de teoria, a suposição de que a teoria "descobre" o "real", de que há uma correspondência entre a "teoria" e a "realidade". De uma forma ou de outra, a noção envolvida é sempre representacional, especular, mimética: a teoria representa, reflete, espelha a realidade. A teoria é uma representação, uma imagem, um reflexo, um signo de uma realidade que - cronologicamente, ontologicamente - a precede. Assim, para já entrar no nosso tema, uma teoria do currículo começaria por supor que existe,"lá fora", esperando para ser descoberta, descrita e explicada, uma coisa chamada "currículo". O currículo seria um objeto que precederia a teoria, a qual só entraria em cena para descobri-lo, descrevê-lo, explicá-lo.

Da perspectiva do pós-estruturalismo, hoje predominante na análise social e cultural, é precisamente esse viés representacional que torna problemático o próprio conceito de teoria. De acordo com essa visão, é impossível separar a descrição simbólica, lingüística da realidade - isto é, a teoria -. de seus "efeitos de realidade". A "teoria" não se limitaria, pois, a descobrir, a descrever, a explicar a realidade: a teoria estaria irremediavelmente implicada na sua produção. Ao descrever um "objeto", a teoria, de certo modo, inventa-o. O objeto que a teoria suposta­mente descreve é, efetivamente, um produto de sua criação.

Nessa direção, faria mais sentido falar não em teorias, mas em discursos ou textos. Ao deslocar a ênfase do conceito de teoria para o de discurso, a perspectiva

pós-estruturalista quer destacar precisa­mente o envolvimento das descrições lingüísticas da "realidade" em sua produção. Uma teoria supostamente descobre e descreve um objeto que tem uma existência independente relativamente à teoria. Um discurso, em troca, produz seu próprio objeto: a existência do objeto é inseparável da trama lingüística que supostamente o descreve. Para voltar ao nosso exemplo do "currículo", um discurso sobre o currículo - aquilo que, numa outra concepção, seria uma teoria - não se restringe a representar uma coisa que seria o "currículo", que existiria antes desse discurso e que está ali, apenas à espera de ser descoberto e descrito. Um discurso sobre o currículo, mesmo que pretenda apenas descrevê-lo "tal como ele realmente é", o que efetivamente faz é produzir uma noção particular de currículo. A suposta descrição é, efetiva­mente, uma criação. Do ponto de vista do conceito pós-estruturalista de discurso, a teoria' está envolvida num processo circular: ela descreve como uma descoberta algo que ela própria criou. Ela primeiro cria e depois descobre, mas, por um artifício retórico, aquilo que ela cria acaba aparecendo como uma descoberta.

Podemos ver como isso funciona num caso concreto. Provavelmente o currículo aparece pela primeira vez como um objeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dos anos vinte. Em conexão com o processo de industrialização e os movimentos imigratórios, que intensificavam a massificação da escolarização, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas sobretudo à administração da educação, para racionalizar o pro­cesso de construção, desenvolvimento e testagem de currículos. As idéias desse grupo encontram sua máxima expressão no livro de Bobbitt, The curriculum (1918). Aqui, o currículo é visto como um pro­cesso de racionalização de resultados educacionais, cuidadosa e rigorosamente especificados e medidos. O modelo institucional dessa concepção de currículo é a fábrica. Sua inspiração "teórica" e a administração científica", de Taylor. No modelo de currículo de Bobbitt, os estudantes devem ser processados como um produto fabril. No discurso curricular de Bobbitt, pois, o currículo é supostamente isso: a especificação precisa de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção de resultados que possam ser precisamente mensurados. Se pensamos no modelo de Bobbitt através da noção tradicional de teoria, ele teria descoberto e descrito o que, verdadeiramente, é o "currículo". Nesse entendimento, o "currículo" sempre foi isso que Bobbitt diz ser: ele se limitou a descobri-lo e a descrevê-lo. Da perspectiva da noção de "discurso", entretanto, não existe nenhum objeto "lá fora" que se possa chamar de "currículo". O que Bobbitt fez, como outros antes e depois dele, foi criar uma noção particular de "currículo". Aquilo que Bobbitt dizia ser "currículo" passou, efetivamente, a ser o "currículo". Para um número considerável de escolas, de professores, de estudantes, de ad­ministradores educacionais, "aquilo" que Bobbitt definiu como sendo currículo tornou-se uma realidade.

A noção de discurso teria uma vantagem adicional. Ela nos dispensaria de fazer o esforço de separar - como seríamos obrigados, se ficássemos limitados à noção tradicional de teoria - asserções sobre a realidade de asserções sobre como deveria ser a realidade. Como sabemos, as chamadas "teorias do currículo", assim como as teorias educacionais mais amplas, estão recheadas de afirmações sobre como as coisas deveriam ser.

Da perspectiva da noção de discurso, estamos dispensados dessa operação, na medida em que tanto supostas asserções sobre a realidade quanto asserções sobre como a realidade deveria ser têm "efeitos de realidade" similares. Para dizer de outra forma, supostas asserções sobre a realidade acabam funcionando como se fossem asserções sobre como a realidade deveria ser. Elas têm o mesmo efeito: o de fazer com que a realidade se torne o que elas dizem que é ou deveria ser. Para retomar o exemplo de Bobbitt, é irrelevante saber se ele está dizendo que o currículo é, efetivamente, um processo industrial e administrativo ou, em vez disso, que o currículo deveria ser um pro­cesso industrial e administrativo. O efeito final, de uma forma ou outra, é que o currículo se torna um processo industrial e administrativo.

Apesar dessas advertências, a utilização da palavra "teoria" está muito amplamente difundida para poder ser simplesmente abandonada. Em vez de simplesmente abandoná-la, parece suficiente adotar uma compreensão da noção de "teoria" que nos mantenha atentos ao seu papel ativo na constituição daquilo que ela suposta­mente descreve. É nesse sentido que a palavra "teoria", ao lado das palavras ''discurso' e "perspectiva", será utilizada ao longo deste livro.

A adoção de uma noção de teoria que levasse em conta seus efeitos discursivos nos pouparia de uma outra dor de cabeça: a das definições. Todo livro de currículo que se preze inicia com uma boa discussão sobre o que é, afinal, "currículo". Em geral, começam com as definições dadas pelo dicionário para, depois, per­correr as definições dadas por uns quantos manuais de currículo. Na perspectiva aqui adotada, que vê as "teorias" do currículo a partir da noção de discurso, as definições de currículo não são utilizadas para capturar, finalmente, o verdadeiro significado de currículo, para decidir qual delas mais se aproxima daquilo que o currículo essencialmente é, mas, em vez disso, para mostrar que aquilo que o currículo é depende precisamente da forma como ele é definido pelos diferentes autores e teorias. Uma definição não nos revela o que é, essencialmente, o currículo: uma definição nos revela o que uma determinada teoria pensa o que o currículo é. A abordagem aqui é muito menos ontológica (qual é o verdadeiro "ser" do currículo?) e muito mais histórica (como, em diferentes momentos, em diferentes teorias, o currículo tem sido definido?).

Talvez mais importante e mais interessante do que a busca da definição última de "currículo" seja a de saber quais questões uma teoria" do currículo ou um discurso curricular busca responder. Per­correndo as diferentes e diversas teorias do currículo, quais questões comuns elas tentam, explícita ou implicitamente, responder? Além das questões comuns, que questões específicas caracterizam as diferentes teorias do currículo? Como es­sas questões específicas distinguem as diferentes teorias do currículo?

A questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. De uma forma mais sintética a questão central é: o quê? Para responder a essa questão, as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade. As diferentes teorias se diferenciam, inclusive, pela diferente ênfase que dão a esses elementos. Ao final, entretanto, elas têm que voltar à questão básica: o que eles ou elas devem saber? Qual conhecimento ou saber é considerado importante ou válido ou essencial para merecer ser considerado parte do currículo?

A pergunta "o quê?", por sua vez, nos revela que as teorias do currículo estão envolvidas, explícita ou implicitamente, em desenvolver critérios de seleção que justifiquem a resposta que darão àquela questão. O currículo é sempre o resulta­do de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar por que "esses conhecimentos" e não "aqueles" devem ser selecionados.

Nas teorias do currículo, entretanto, a pergunta "o quê?" nunca está separada de uma outra importante pergunta: "o que eles ou elas devem ser?" ou, melhor, "o que eles ou elas devem se tornar?". Afinal, um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão "seguir" aquele currículo. Na verdade, de alguma forma, essa pergunta precede à pergunta "o quê?", na medida em que as teorias do currículo deduzem o tipo de conhecimento considerado importante justamente a partir de descrições sobre o tipo de pessoa que elas consideram ideal. Qual é o tipo de ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade? Será a pessoa racional e ilustrada do ideal humanista de educação? Será a pessoa otimizadora e competitiva dos atuais modelos neoliberais de educação? Será a pessoa ajustada aos ideais de cidadania do moderno estado-nação? Será a pessoa desconfiada e crítica dos arranjos sociais existentes preconizada nas teorias educacionais críticas? A cada um desses "modelos" de ser humano corresponderá um tipo de conhecimento, um tipo de currículo.

No fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de "identidade" ou de "subjetividade". Se quisermos recorrer a etimologia da palavra "currículo", que vem do latim curriculum, "pista de corrida", podemos dizer que no curso dessa "corrida" que é o currículo acabamos por nos tornar o que somos. Nas discussões cotidianas, quando pensamos em currículo pensamos apenas em conhecimento, esquecendo-nos de que o conhecimento que constitui o currículo está inextricavelmente, centralmente, vitalmente, envolvido na­quilo que somos, naquilo que nos tornamos: na nossa identidade, na nossa subjetividade. Talvez possamos dizer que, além de uma questão de conhecimento, o currículo é também uma questão de identidade. É sobre essa questão, pois, que se concentram também as teorias do currículo.

Da perspectiva pós-estruturalista, podemos dizer que o currículo é também uma questão de poder e que as teorias do currículo, na medida em que buscam dizer o que o currículo deve ser, não podem deixar de estar envolvidas em questões de poder. Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma operação de poder. As teorias do currículo não es- tão, neste sentido, situadas num campo puramente" epistemológico, de competição entre "puras" teorias. As teorias do currículo estão ativamente envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter hegemonia. As teorias do currículo estão situadas num campo epistemológico social. As teorias do currículo estão no centro de um território contestado.

É precisamente a questão do poder que vai separar as teorias tradicionais das teorias criticas e pós-criticas do currículo. As teorias tradicionais pretendem ser apenas isso: "teorias" neutras, científicas, desinteressadas. As teorias críticas e as teorias pós-críticas, em contraste, argumentam que nenhuma teoria é neutra, científica ou desinteressada, mas que está, inevitavelmente, implicada em relações de poder. As teorias tradicionais, ao aceitar mais facilmente o status quo, os conhecimentos e os saberes dominantes, acabam por se concentrar em questões técnicas. Em geral, elas tomam a resposta à questão "o quê?" como dada, como óbvia e por isso buscam responder a uma outra questão: "como?". Dado que temos esse conheci­mento (inquestionável?) a ser transmitido, qual é a melhor forma de transmiti-lo? As teorias tradicionais se preocupam com questões de organização. As teorias críticas e pós-críticas, por sua vez, não se limitam a perguntar "o quê?", mas submetem este "quê" a um constante questionamento. Sua questão central seria, pois, não tanto "o quê?", mas "por quê?". Por que esse conhecimento e não outro? Quais interesses fazem com que esse conhecimento e não outro esteja no currículo? Por que privilegiar um determinado tipo de identidade ou subjetividade e não outro? As teorias críticas e pós-criticas de currículo. estão preocupadas com as conexões entre saber, identidade e poder.

Como vimos, uma teoria define-se pelos conceitos que utiliza para conceber a "realidade". Os conceitos de uma teoria dirigem nossa atenção para certas coisas que sem eles não ''veríamos''. Os conceitos de uma teoria organizam e estruturam nossa forma de ver a "realidade". Assim, uma forma útil de distinguirmos as diferentes teorias do currículo é através do exame dos diferentes conceitos que elas empregam. Neste sentido, as teorias críticas de currículo, ao deslocar a ênfase dos conceitos simplesmente pedagógicos de ensino e aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder, por exemplo, nos permitiram ver a educação de uma nova perspectiva. Da mesma forma, ao enfatizarem o conceito de discurso em vez do conceito de ideologia, as teorias pós-críticas de currículo efetuaram um outro importante deslocamento na nossa maneira de conceber o currículo. Por isso, à medi­da que percorrermos, nos tópicos a seguir, as diferentes teorias do currículo, pode ser útil ter em mente o seguinte quadro, que resume as grandes categorias de teoria de acordo com os conceitos que elas, respectivamente, enfatizam.

TEORIAS TRADICIONAIS

TEORIAS CRÍTICAS

TEORIAS PÓS-CRÍTICAS

ensino

ideologia

identidade, alteridade, diferença

aprendizagem

reprodução cultural e social

subjetividade

avaliação

poder

significação e discurso

metodologia

classe social

saber-poder

didática

capitalismo

representação

organização

relações sociais de produção

cultura

planejamento

conscientização

gênero, raça, etnia, sexualidade

eficiência

emancipação e libertação

multiculturalismo

objetivos

currículo oculto

resistência

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documento de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p 11-17.