Como é o metodo comparativo

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Wecisley Ribeiro do Espírito Santo

O chamado método científico é, por definição, comparativo. Para além das diferenças disciplinares, é a comparação entre fenômenos objetiváveis que permite a identificação de comportamentos regulares, tendências gerais e leis. Os procedimentos experimentais, observacionais, analíticos e interpretativos que se distinguem entre si, no contexto da grande classificação das Ciências da Natureza e das Ciências Humanas, guardam entre si semelhanças relacionadas à necessidade de comparar unidades de investigação. Tais unidades podem ser individualizadas (um átomo, uma célula, um tecido, um órgão, um corpo) ou coletivas (um átomo, uma molécula, uma célula, um tecido, um corpo, uma família, um grupo social, uma classe escolar, uma escola, um sistema nacional de educação, um município, um estado, uma nação, um continente ou, ainda, a humanidade).

A repetição proposital dos exemplos de unidades de pesquisa individuais e coletivas coloca a comparação no centro dos problemas científicos. Com base em que pressupostos se pode afirmar que um átomo constitui objeto individualizado ou coletivo? O problema se refere à escala de observação. Na escala subatômica o átomo compreende um agregado de prótons, nêutrons e elétrons sendo, portanto, um coletivo de partículas. E se reduzimos mais a escala, chegamos às hipóteses da mecânica ondulatória de Schrödinger para as quais as partículas nada mais são que uma probabilidade em uma série indefinida que constitui o contínuo espaço-tempo. Aqui é a própria distinção entre individual e coletivo que se dissolve, de vez que nos referimos de modo singularizado ao contínuo espaço-tempo, ao passo que ele preserva suas possibilidades infinitas de segmentação em unidades discretas – o que permite a identificação da pluralidade no uno.

Se, ao contrário, observamos o átomo na escala de uma determinada molécula podemos tomá-lo como a unidade individual que constitui uma unidade coletiva. Ora, esta ambiguidade identitária do átomo caracteriza obviamente todos os demais exemplos de unidades de investigação inventariados no primeiro parágrafo. De modo que a molécula constitui um indivíduo do agregado celular; a célula é um indivíduo da coletividade histológica; um tecido circunscreve uma unidade do órgão; um órgão compõe o coletivo denominado organismo; um organismo individual humano é integrante de grupos sociais e os grupos sociais, em sua infinita diversidade, integram os povos, a seu turno, constitutivos da humanidade.

Vê-se, pois, que é a comparação entre o objeto de pesquisa e fenômenos outros, de escala equivalente ou distinta, que define sua natureza individual ou coletiva. Assim, desde seus primeiros procedimentos, o pesquisador já opera por meio de comparações – seja de modo consciente ou inconsciente. Todo o processo de construção e delimitação dos objetos de pesquisa compreende uma sucessão de procedimentos comparativos. Digamos que se queira, por exemplo, investigar a contribuição educativa da Educação Física como disciplina curricular. Será preciso antes de tudo definir este campo disciplinar, inventariar suas características distintivas, suas particularidades e os gêneros de conhecimentos que constituem sua contribuição original aos processos formativos da escola. Para isso, será necessário confrontá-la com os demais componentes do currículo, identificando semelhanças e contrastes entre eles. Além disso, importa proceder a um balanço das práticas pedagógicas da Educação Física em um número ampliado de escolas, constituindo uma amostra tão vasta quanto possível. Eis aqui a célebre preocupação com o alargamento das dimensões do N – isto é, do número de ocorrências do fenômeno que se pretende investigar. Uma vez mais, o que se pretende aqui é inventariar regularidades e exceções, semelhanças e contrastes entre as unidades da amostra.

Chegamos assim à relatividade de outra distinção esquemática e simplificadora da atividade científica – qual seja, a oposição entre pesquisas qualitativas e quantitativas. No primeiro caso, trata-se de proceder ao inventário intensivo dos atributos de uma unidade empírica do objeto de pesquisa. O que se entende por qualidade aqui é a característica dotada de propriedades não mensuráveis. A motivação coletiva, a alegria, o entusiasmo em uma aula de Educação Física, por exemplo, não são facilmente conversíveis em valores numéricos. Note-se que a própria definição do caráter da pesquisa é construída comparativamente; a qualidade se distingue da quantidade. Deve-se evitar, pois, a antinomia da acepção moral que opõe qualidade a defeito (no sentido de virtude e vício) que tantas vezes confunde pesquisadores ávidos por conferir prestígio à sua linha de pesquisa, no contexto da insalubre guerra política universitária – por seu turno, uma deformação do impulso comparativo humano.

O aspecto qualitativo das pesquisas assim definidas se refere ao objetivo de construir uma “descrição densa” das qualidades do caso observado, conforme a célebre formulação de Clifford Geertz. E descrever densamente significa não apenas enumerar detalhes, mas reconstituir no relato de pesquisa a robustez das relações entre atributos do objeto. Trata-se de operar uma comparação interna das características de uma unidade particular de pesquisa. Retomando o exemplo sugerido acima, uma pesquisa qualitativa sobre a Educação Física escolar poderia ser realizada mediante observação de campo do processo de interação social e das relações entre a professora ou o professor e estudantes, de um lado, e entre integrantes das turmas, de outro, como de resto, das relações entre turmas distintas. Estes processos interativos seriam detalhadamente registrados em diário de campo.

Ao final da fase de campo, o pesquisador inicia a análise, lendo diversas vezes os registros de seu diário com o objetivo de identificar regularidades; isto é, fenômenos, eventos e falas recorrentes. Uma vez mais, a leitura sucessiva do material de campo visa à comparação interna das qualidades ou atributos do objeto de investigação, cujo diário constitui o corpus submetido à análise. As regularidades identificadas na leitura do material compreendem os temas chaves da descrição densa que a pesquisa qualitativa quer construir. Na elaboração do relatório final da investigação (monografia, dissertação, tese, livro) o autor deverá agora (e somente agora, depois de ter apreciado sistematicamente a coerência interna dos registros de campo) lançar mão de pelo menos dois outros procedimentos comparativos: 1- aquele cotejamento com as demais disciplinas curriculares a fim de identificar as particularidades da Educação Física; 2- o confronto com as pesquisas já publicadas sobre o tema para definir as especificidades e as generalidades do caso particular observado em campo.

A pesquisa quantitativa, por sua vez, não se opõe aos procedimentos exemplificados acima, mas os complementa. É aqui que a comparação estatística se beneficia de um N tão abrangente quanto possível. Ainda em nosso exemplo, caso seja viável construir uma amostra que inclua, digamos, todas as escolas de ensino médio da cidade do Rio de Janeiro, construiremos uma base extensiva bastante razoável. A extensão da amostra, entretanto, costuma ser inversamente proporcional ao seu detalhamento, na medida em que será necessário construir variáveis de mensuração abrangentes, capazes de reunir todas as suas ocorrências. Apenas para ilustrar duas delas, pode-se pretender medir o percentual de participantes das aulas de Educação Física no ensino médio carioca por corte de gênero, de um lado, e pela condição socioeconômica, de outro.

Embora nem sempre se possa levar a curso as duas modalidades de estudo (qualitativa e quantitativa) simultaneamente, é desejável que os pesquisadores cooperem com seus pares a fim de constituir um panorama mais completo do objeto estudado. O encerramento sectário e dogmático do investigador em grupos que compartilham de seus métodos não é sinal de genialidade, mas de arrogância que embota o desenvolvimento intelectual. Novamente, a integração com equipes de pesquisa que atacam por outros métodos os mesmos problemas enfrentados por nós próprios oferece um iluminador horizonte comparativo.

Mais até que a pesquisa científica é a própria cognição que se desenvolve e opera comparativamente. Os dados registrados pelos órgãos dos sentidos são processados no sistema nervoso com o fito de elaborar modelos cerebrais do mundo e da interação do organismo com ele para fins adaptativos. Ao longo da vida, esta modelagem cerebral será tanto mais eficaz e acurada quanto maior e mais diversificada a experiência do organismo. Extensão e diversidade de experiência significa registro mais vasto e detalhado de dados para que as nuances e especificidades dos contextos sejam modeladas de modo sempre mais verossímil. O trabalho do cérebro consiste, por conseguinte, em comparar os dados registrados pelos sentidos corporais à medida que a motricidade leva o corpo a contextos novos.

A construção dos esquemas cognitivos é sempre comparativa – sejam esquemas práticos ou teóricos. Esquemas cognitivos são registros mnemônicos de pensamento, sentimento e ação que se consolidam como úteis, ao longo da experiência do sujeito cognoscente. Estes padrões lógicos, afetivos e práticos se inscrevem no sistema nervoso central, periférico e nas suas conexões com os sistemas orgânicos por meio de uma infraestrutura neurofisiológica constituída por vastas constelações sinápticas que se ramificam pelos órgãos e pelo sistema músculo-esquelético. Quando um sujeito aprende a andar de bicicleta, ativa para isso um conjunto de procedimentos comparativos entre ações motoras eficazes e ineficazes, seguras e inseguras, equilibradas e desequilibradas, selecionando as primeiras e descartando as segundas, respectivamente. Os esquemas cognitivos daí decorrentes servirão mais tarde como horizonte comparativo para novos aprendizados – por exemplo, quando for andar de motocicleta.

Também as operações cognitivas de natureza abstrata operam por comparação. A interpretação de um texto, por exemplo, se constrói mediante associações com conhecimentos elaborados a partir leituras anteriores. Aqui defrontamos um problema que a natureza comparativa da cognição humana coloca para o ato de ler. É que a interpretação textual precisa se processar em duas fases articuladas, mas distintas. Em primeiro lugar, é preciso evitar associações prematuras com textos já conhecidos para que a mensagem do autor seja apreendida em suas características particulares. Estabelecida esta recepção atenta dos argumentos do texto, a associação com o conhecimento prévio é não apenas desejável, mas também inevitável. E, no entanto, como a mente humana é essencialmente associativa, estas etapas não se sucedem no tempo, mas se expressam como dimensões simultâneas da leitura; razão pela qual a vigilância do leitor contra as comparações precipitadas é constitutiva do ato de ler.

Em suma, a comparação é o recurso heurístico por meio do qual o pensamento se desenvolve. A pesquisa científica constitui assim um caso particular dos fenômenos mais gerais da aprendizagem. O pesquisador é alguém que se esforça por controlar rigorosa e sistematicamente faculdades comparativas inatas da natureza humana. O que fazemos cotidianamente de modo inconsciente, a investigação acadêmica faz com método deliberado. Àqueles que desejarem enveredar pelas sendas da ciência cabe o exercício regular e diversificado da curiosidade metódica, mediante vasta experiência de leitura pessoal e convivência social nos laboratórios e equipes de estudo. Qualquer ser humano que alargar permanentemente seu horizonte comparativo poderá prestar serviço útil à missão científica.