A cultura popular em santa rita no século xx

A cultura popular em santa rita no século xx
Saiba mais sobre o sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, na Gamboa, em http://pretosnovos.com.br/.

A cultura popular em santa rita no século xx
A matriz de Santa Rita de Cássia, outrora chamada “igreja dos malfeitores”, e em cujo Largo homônimo havia um cemitério de pretos-novos, é o único templo barroco da cidade do Rio de Janeiro que conserva intactas, como bem integrado, talhas rococós do século XVIII. Relacionadas ao surgimento das primeiras Irmandades cariocas, as singularidades decorativas da igreja de Santa Rita — cuja tipologia, integralmente preservada, permite seu estudo sistemático — disponibilizam indícios sobre o sentimento religioso popular vivido durante o período colonial e, concomitantemente, refletem o quotidiano setecentista do Rio de Janeiro.

A análise arquitetônica, tantas vezes negligenciada como fonte documental, contribui de forma determinante e significativa para a investigação de determinado período histórico e a compreensão da sociedade que nele incidiu, com suas ideologias. Sandra Poleshuck de Faria Alvim, ao estudar a arquitetura religiosa colonial no Rio de Janeiro, apontou como a análise da talha de madeira permite explicitar as mudanças da vida econômica, social e religiosa, assim como as tendências de gosto. Tratando-se as talhas como um “artefato remanescente de cultura material”, produz-se um aporte privilegiado para a compreensão antropológica e arqueológica do edifício, o qual reúne símbolos, registra tendências e conserva os traços das sucessivas intervenções.

► Leia o trabalho apresentado no XII Congresso Internacional de Reabilitação do Patrimônio Arquitetônico e Edificado — A dimensão cotidiana do patrimônio e desafios para sua preservação (outubro de 2014).

O Brasil foi pioneiro na devoção à Santa Rita de Cássia, cuja canonização só ocorreria em 1900 e cuja memória só seria incluída no Calendário Romano em 2002.

O santuário da cidade de Santa Rita, na Paraíba, data de 1776, sendo posterior à do Rio de Janeiro por poucas décadas.

Conheça mais a respeito com o pesquisador Marcelo Gomes (estudante do Curso de Ciências das Religiões na UFPB):

A pequena Capela em honra de Santa Rita, hoje Santuário, foi construída quando um núcleo habitacional muito acanhado começava a surgir. Pode-se dizer que, em meados de 1776, Santa Rita não passava de um pequeno arraial, um simples povoado.

A respeito disso, Lapemberg Medeiros de Almeida informa (em um trabalho que infelizmente nunca chegou a ser publicado) que a parte urbana desta povoação é “produto do desenvolvimento de algum agrupamento de tropas, ponto de pernoite”. Segundo o autor, aquilo que hoje corresponde ao centro habitacional começou como acampamento de apoio para os viajantes que cruzavam a Paraíba, da capital ao sertão e vice-versa, encontrando em Santa Rita aprazível paragem onde aos poucos surgiram habitações no entorno do ponto originário.

A famosa obra Datas e notas par

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a História da Paraíba, escrita em 1909 por Irineu Ferreira Pinto, registra que a Igreja de Santa Rita “foi edificada no presente ano (1776), segundo um dístico existente na fachada da dita Igreja”. Tal dístico encontra-se no interior da Igreja, ao lado esquerdo da porta principal, encravado na parede.

É com certeza um pequeno mimo dos tempos passados, que guardado com tanto carinho e em local adequado, continua a cumprir sua secular função de informar em tão precioso letreiro datas importantes para a história da cidade e de seu passado religioso. Tal cuidado é devido à sabedoria e zelo do saudoso Monsenhor Rafael de Barros Moreira, que o quis colocá-lo ali em 1932, no período da conclusão dos trabalhos da inauguração da torre que deu nova forma à fachada da igreja.

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Não há fontes que forneçam detalhes sobre como a devoção a Santa Rita de Cássia chegou à Paraíba colonial nem sobre quem construiu o templo primitivo. Lapemberg escreveu que a igreja de Santa Rita foi “inicialmente uma capela de pedra e cal, de estilo modesto, desprovida dos requintes da arte e do bom gosto, sem o cuidado arquitetônico, sem a perfeição da arte”. Com base nisto e desejosos de conhecer traços de sua construção original, nos arriscamos a desenhar este modesto estudo em nanquim, que representa um pouco da primeira fase arquitetônica desta Igreja, que vai de 1776 à década de 1920.

Quando a capela foi construída, a Diocese da Paraíba ainda não existia. A circunscrição pertencia antes de 1892 ao Bispado de Olinda. A Diocese estava então sob o comando de Dom Tomás da Encarnação da Costa e Lima, titular de 1774 a 1784. A Freguesia de Santa Rita foi criada aos 20 de fevereiro de 1839, por força da Lei Provincial nº 2, sendo a capela elevada a categoria de Matriz.

Hoje, ao admirarmos o templo que se destaca na praça central da cidade, fica quase que impossível compara-lo àquela capela inicial, que foi sendo ampliada e adornada ao longo dos anos e que viu nascer um povoado, uma freguesia, uma cidade chamada Santa Rita.

REFERÊNCIAS

  • ALMEIDA, Lapemberg Medeiros de. Santa Rita antes e depois de 1889. Apontamentos para a História do Município. [Inédito.] Santa Rita, 1948.
  • PINTO, Irineu Ferreira. Datas e Notas para a História da Paraíba. V. 1. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 1977.

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Atributo de Santa Rita (intradorso do arco cruzeiro, do lado do Evangelho)

O estilo pode ser entendido — dentro dos marcos social e pós-processual — como um fator ativo na produção e manipulação da cultura material.

Para trabalhar com o conceito de estilo, a Arqueologia se vale de categorias chave propostas por diversos autores:

  • Polly Wiessner (1983): estilo emblemático (variedade formal que conscientemente transmite informação sobre filiação a um grupo) e estilo assertivo (variedade formal que transmite informação sobre a identidade individual).
  • William Macdonald (1993): referência protocolar (estágios de produção dentro de um marco estilístico) e referência elegante (habilidade de um indivíduo transpor os limites protocolares a próprio critério).
  • James Sackett (1977): variação isocréstica (escolha inadvertida entre variantes funcionalmente equivalentes) e variação iconológica (escolha da forma hábil para a comunicação intencional).

Dispensando o aspecto estatístico de que as análises realizadas por estes autores eventualmente se revestem, é possível valer-se da categorização por eles criada para ultrapassar o mero marco histórico-artístico das descrições iconológicas.

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Sarcófago de Santa Rita

O sarcófago de Santa Rita, conservado na cidade italiana de Cascia, é emblemático e traz em código icônico um resumo da sua vida e santidade, representando-a associada a Maria Madalena, cujo culto, aliás, experimentaria

… uma renovação durante o Barroco porque teria sido pecadora, tornando-a um modelo mais próximo para os católicos correntes (especialmente as mulheres), do que os santos que viveram piedosas vidas de perfeição. Assim a Madalena se tornou um dos mais populares temas no Barroco.(BAILEY, Gauvin Alexander. Baroque & Rococo.
Londres: Phaidon Press, 2012, p. 74)

Tal identificação da “Madalena” (Lc 8,2s) com a “pecadora” que ungiu de lágrimas os pés de Cristo (Lc 7,36-50) só foi comum entre os intérpretes latinos; entre os gregos, porém, as personagens são tidas por distintas.

Enquanto no Ocidente as relíquias de Maria Madalena são cultuadas em Marselha desde o século VIII, no Oriente elas são veneradas em Constantinopla, para onde teriam sido transferidas desde Éfeso no século IX.

Logicamente, Rita foi representada ao lado da Madalena tanto por ter sido religiosa do convento a ela dedicado, quanto por se considerada participante da Paixão de Cristo em virtude de seu estigma, à semelhança da santa de Magdala, que esteve ao pé da cruz (Jo 19,25).

No entanto, alguns autores viram na associação à Madalena uma alusão, sem fundamento, ao pretenso caráter “impuro” (?!) do matrimônio contraído por Rita.

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Figura 1: Friedrich Hagedorn. Vista do Rio de Janeiro tomada do Morro da Conceição (1854). Distingue-se claramente a igreja de Santa Rita, com a Candelária atrás. À direita é possível divisar as formas curvas da já inexistente igreja de São Pedro dos Clérigos e, à esquerda, o mosteiro de São Bento.

A paisagem é “uma sequência de traços do passado que foi construído, redesenhado e reescrito ao longo das décadas, séculos e milênios” (HOLTORF; WILLIAMS, 2006, p. 237). E no borrão do Rio de Janeiro, muita coisa já foi rasurada. Convém proceder como os restauradores em busca das pinturas parietais originais, como os apreciadores da alcachofra, que pacientemente a descascam em busca do miolo saboroso. Na paisagem acumulada é preciso distinguir o rastro dos homens e os efeitos das forças naturais. Sem tal prospecção, sem este olhar retrospectivo, torna-se impossível aspirar ao futuro, elaborar uma “memória prospectiva”, isto é, criar lugares de memória. Para Pierre Nora, três são os aspectos que devem concorrer para concretizar os lugares de memória: materialidade, função e simbolismo.

Mesmo um lugar de aparência puramente material […] só é lugar de memória se a imaginação o investe de aura simbólica. Mesmo um lugar puramente funcional […] só entra na categoria se for objeto de um ritual. (NORA, 1993, p. 21)

Portanto, é preciso haver uma vontade de memória para que os lugares de memória sejam caracterizados. Se a História é reconstrução, memória é experiência voluntária do passado nos remanescentes materiais herdados:

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não existe memória espontânea, que é preciso criar arquivos […]. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento de história, mas que lhe são devolvidos. (NORA 1993, p. 13)

Os edifícios históricos reúnem símbolos, registram tendências, apontam indícios da cultura citadina e indiretamente refletem a evolução urbana. Em suma, são simultaneamente documento e signo. Nesse sentido, o Manual de Arqueologia Histórica em Projetos de Restauração (2000, p. 11) indica:

Quando um bem cultural é tombado pelo Poder Público, isto se dá devido ao seu valor (histórico, artístico, arqueológico, etnográfico, paisagístico, etc.), que foi reconhecido como merecedor de destaque e, portanto, de ações que o preservem, para que cumpra seu papel de transmitir à sociedade sua participação na construção do Brasil. Assim, um projeto de Restauração / Conservação de um bem cultural da Nação deve ter como objetivo, dentre outros, a recuperação e a socialização da história deste bem. […] As edificações são, assim, produto e produtoras de relações sociais, as quais pretendemos desvelar para melhor conhecermos o bem que temos o dever de preservar. A partir deste conhecimento, poderemos melhor realizar o nosso papel de contadores da história do Brasil.

Sob esta ótica, a igreja de Santa Rita — que fez parte do primeiro registro nacional de tombamento em 1938 — reveste-se de enorme interesse por conta de suas inúmeras singularidades. Estando em tormentosa articulação com um entorno tão descaracterizado (Figuras 1 e 2), surpreende sua sobrevivência apesar das transformações operadas pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX, seguidas do desenfreado adensamento da área histórica do Rio de Janeiro.

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Figura 2: A igreja de Santa Rita vista atualmente do Morro da Conceição. É chocante a degradação do seu entorno, comparando-se com a litografia anterior, feita aproximadamente do mesmo ângulo visual.

Afinal, o que é um monumento sem sua paisagem? Para Gustavo Giovannoni (1925, p. 172), as condições ambientais têm “tal importância, que ‘alterar a perspectiva’ de um monumento equivale quase à sua completa destruição”. Por isso, a administração pública realiza uma “eutanásia” patrimonial quando trabalha unicamente na escala arquitetônica, ignorando a escala territorial. O parâmetro não pode ser a metragem quadrada — aliás quantificação de uma extensão abstrata —; a referência precisa ser a escala visual. Com efeito, a paisagem urbana não é capricho estético, mas um direito do cidadão, frequentemente defraudado pela falta de governança territorial, pois é comum que a percepção visual da cidade histórica na paisagem sofra de descontinuidade. Se a prática espacial das instâncias governamentais pretende estabelecer representações espaciais, deve respeitar os espaços de representação da população. Tomo estes conceitos do sociólogo francês Henry Lefebvre, que definia “prática espacial” como o lugar em que espaços são gerados e usados (geralmente por quem detém o poder); “representações espaciais” como a retórica da prática espacial; e “espaços de representação” como os lugares vivos produzidos e modificados por seus habitantes (eventualmente espaços de resistência).

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Brasão da Família Nascentes Pinto

Em geral, quando se fala de padroado (ou patronato), se pensa numa das manifestações do regalismo, um sistema de relações entre Igreja e Estado tipicamente moderno. Caracterizar-se-ia pela concessão ao Estado, por parte da Santa Sé, do poder de indicar nomes para ocuparem cargos e funções tipicamente eclesiásticas, como a faculdade de nomear bispos para dioceses pertencentes a determinado país, dentre outros exemplos possíveis.

Entretanto, essa é apenas uma das facetas — a mais ampla e pública — do direito de padroado. De fato, é possível afirmar a existência de um padroado particular, ou seja, não público ou não estatal, em relação a benfeitores, mecenas, patronos de obras pias, capelas, irmandades, etc. Ademais, do ponto de vista canônico, o direito de padroado compunha-se de mais concessões, como se verá mais à frente, além do direito de nomeação. De qualquer modo, era compreendido como o privilégio por excelência. O que mais pode ser afirmado, do ponto de vista jurídico-canônico, sobre o direito de padroado? Pode-se resumir da seguinte forma.

O privilégio mais importante e mais apreciado era o de apresentação, ou seja, de nomear, ainda que haja outros modos de adquirir esse direito (como referido, por acordo entre a Santa Sé e Estados Nacionais, ou ainda por contrato com pessoas físicas ou jurídicas). Além desse direito de apresentar, que era absoluto, havia o direito a alimentos, em caso de redução do patrono à indigência e havendo rendas sobrantes, além de direitos honoríficos, tais como o de precedência em procissões e funções semelhantes, ocupação de lugar mais honroso na Igreja, etc.

A Canonística entende que o direito de padroado é basicamente uma mostra de gratidão da Igreja aos seus benfeitores. Àqueles que cediam áreas para edificação de igrejas ou as construíam ou lhes dotavam do necessário para o sustento do culto a Igreja lhes concedia o direito de padroado, com algumas obrigações e privilégios anexos. Não se tratava, portanto, de uma manifestação de justiça estrita, mas antes de uma concessão, um privilégio. Esse direito de padroado poderia ser derivado de um título nobiliárquico ou anexo a uma propriedade (padroado real) ou, num padroado pessoal, pertencer a uma pessoa física.

Historicamente, no Ocidente, o Concílio de Orange (441) reconheceu certo direito de apresentação a bispos fora de sua diocese. No século VII, tal direito foi estendido a leigos pelo Sínodo de Toledo IX. Visando afastar os abusos contra a liberdade da Igreja, no século XIII, o papa Alexandre III definiu melhor os contornos do direito de padroado. Tal legislação permaneceu praticamente inalterada até a entrada em vigor do Codex de 1917.

A história da igreja da Irmandade de Santa Rita apresenta um interessante conflito surgido a partir do pedido de aplicação de direito de padroado por parte do criador da Irmandade (Manuel Nascentes Pinto e descendente), o qual não foi reconhecido pelo Bispo do Rio de Janeiro. A partir da negativa, originou-se um processo judicial-canônico, cuja solução, no ano de 1753, cerca de trinta anos após o seu início, não deixa de ser exemplar no que diz respeito à religiosidade setecentista.

O programa História pelas Ruas do Rio, da Rio TV Câmara, dedicou um episódio sobre o antigo Sítio Valverde, situado junto ao Morro da Conceição, em que ficava a antiga ermida de Santa Rita.